Joey
Os gritos de desaprovação rompiam pela casa. Era papai, despejando toda a sua raiva referente a minha postura plácida demais, a minha imaturidade e descaso com o fato de eu já ter 14 anos e ainda agir como uma criança que precisa ser protegida.
- Você precisa ter pulso firme e se virar, porra. - rosnou, enquanto limpava o meu rosto com um algodão, ensopado de remédio. Ardia.
Ele se ressente de mim, é surpreendente a maneira como ele faz com que me sinta uma criança pequena suplicante, apenas com seu olhar zangado, sua impassibilidade; como sou incômodo e manhoso, mesmo que queira que eu cresça.
- Eu sinto muito.
- Se sente muito, então por que não cresce logo de uma vez e para de deixar que os outros te façam de saco de pancada? Já falei que você tem que aprender a revidar, cacete.
Ele ainda estava limpando meus machucados com Merthiolate, e precisei ficar bem parado para que não doesse. Papai passava isso em meus joelhos ralados e eu chorava, porque ardia muito. Não que seja muito diferente agora.
Às vezes, tentava mostrar que não doía, mas quando aquilo encostava na minha pele, desistia até de viver.
- Isso é tudo culpa da sua mãe, ela lhe mimou demais. Agora sou eu quem tem que resolver as coisas.
De repente, ouvi uma gargalhada, foi a resposta de mamãe ao comentário do papai. Ela estava começando a arfar de tanto rir.
- Prefiro educar meu filho igual um mimado, do que deixar você cuidar e transformar ele em um louco!
Papai levantou, não gostando da sua reação. Um calafrio, como se fosse febre, me percorreu a espinha.
- Seria um favor, ao menos ensinaria a dar uma surra alguém. - rosnou. - Aí não iria precisar toda hora de mim.
- Ainda bem que eu o eduquei da forma certa, se fosse por você ele teria matado o garoto.
Estremeci com essa frase. Nunca fui e nunca serei a favor de coisas assim. Nunca fui capaz de matar uma mosca, imagine um rapaz.
Uma vez, quando pequeno, encontrei um rato comendo migalhas no chão. Quis chegar mais perto do bichinho e ele se escondeu debaixo do fogão.
Peguei mais migalhas na mesa, depois ajoelhei e fiquei esperando ele sair.
- Ô, Camundongo. - cochichei, para que ele não se assustasse. - Volta, por favor. Por favorzinho.
Ele pôs o focinho para fora e farejou. Olhei as patinhas, os bigodes e puxei-o pela cauda toda enroscada. Ele era enorme, tão grande quanto Isis.
Então um estrondo me fez gritar. Era o sapato do papai batendo no fogão, esmagando o camundongo.
- Você matou ele!
- Se tiver tocado nessa porra vou te fazer lavar as mãos com água sanitária até a pele esfolar, cacete.
Ele me fez ver o corpo amassado e chorei tanto que pensei que meus olhos iriam derreter. Não sei se chorei mais por ele ter matado o rato, ou pela surra que levei de cinta depois.
- Não seria uma ideia tão ruim assim, mostraria quem é que manda. Você sabe, o sentimento que fica em nós, é eterno.
- Sentir o quê? Que precisa ferir pessoas para suprir o seu vazio?
- O máximo que eu consiga sentir.
- A melhor maneira de acabar com uma discussão é dialogando. - declarou mamãe, juntando as duas mãos contra as coxas.
- Estamos juntos há anos e só agora você vem me falar isso? - indagou papai, num tom irônico.
As sobrancelhas da mamãe vacilaram e pude ver um vislumbre de frustração nos seus olhos, mas logo se desfez e deu lugar a uma vaga vantagem.
- Quem é que sempre perdia o controle, Jeff? - perguntou. Ele sabe muito bem quem, todos aqui sabem. A relação deles sempre foi de gato e rato.
Lembro de me deitar, abraçado a Francine, e ouvir as discussões entre meus pais invadir o meu sono. Francine latia e eu apertava-a com um pouco mais de força, na esperança de que se calassem, e, em desassossego, acabava por adormecer.
Às vezes, discutiam tanto que eu tinha que me esconder embaixo da cama e colocar travesseiros por todos os lados para abafar o som. E, quando pensava que estavam dormindo, eu chorava.
Não consigo me lembrar de uma primeira discussão, desde que me conheço por gente, as coisas sempre foram assim.
- Talvez seja porque você não colabora, às vezes acho que implora para que eu perca o resto da paciência que ainda me resta.
Com isso, mamãe revirou os olhos e andou até a pia para lavar a louça do almoço. É seu truque para não enlouquecer, quando cansa de brigar, procura fazer outra coisa enquanto discutem, para demonstrar que não se importa.
- Ah, entendi. Eu preciso sempre concordar com você e, senão, perde o controle, que, no caso, você não tem. - resmungou, esfregando arduamente as colheres com a bucha. Eu podia ver e sentir o tremor, a bomba logo logo iria explodir.
- É, é basicamente isso. Mas, se eu não tivesse paciência, garanto que você não estaria mais aqui há muito tempo.
- A única coisa que você tem de sobra é carência, seu imbecil! É por isso que ainda estou aqui! - dessa vez ela gritou, disparando a colher na pia. Meu corpo foi tomado por uma tensão terrível.
Sabe nos filmes, quando alguém fala ou faz alguma coisa errada, o disco arranha e, de repente, fica um silêncio total? Bem, é exatamente o que aconteceu.
Papai cruzou os braços, então me acalmei um pouco.
- Não me culpe por adorar você, meu favo de mel. - disse ele, e mamãe levou meio segundo para encontrar a própria voz.
- Uau, que gracinha. - rosnou, igualzinho um pitbull quando viu Francine. - Mas eu sei, melhor do que ninguém, o que você é.
- Então, o que eu sou, Barbiezinha?
- Prefiro não comentar.
Ele deu de ombros.
- De qualquer forma, gosto de você do mesmo jeito. - declarou papai e sorriu para ela, mesmo, de verdade, de maneira até oferecida.
Mamãe estava abrindo e fechando a boca, mas não conseguia falar nada, até cerrar os punhos, como se estivesse pensando em acertar a cara de papai.
- Sorte a minha. - resmungou. O alívio fez meu estômago embrulhar e os joelhos ficarem líquidos.
As brigas, tão presentes em nosso cotidiano, eram previsíveis, como a respiração. Elas preenchem com seu domínio sufocante o ambiente. Às vezes, não tem um dia que eles não passem sem discutir um com o outro.
Eu lembro de acordar com os gritos e os latidos de Francine, do som agonizante das suas unhas arranhando a porta e do rosnar furioso, porque ele havia encostado a mão na mamãe. Eu tinha cinco anos.
Lembra do que te disse, Joey? Não diga uma palavra e nem saia quando ele estiver aqui. Mesmo se ele me bater.
Me enfureço, minha raiva se internaliza e congestiona meus pulmões. Não consigo respirar, então eu choro. Papai vai gritar e machucá-la. Depois, as dores e as lágrimas são acalmadas com presentes e sorvete.
Comprei um livro novo para você.
É um sorvete de menta com chocolate. O seu favorito.
Quer que eu compre vestidos novos para você? Esses já estão muito gastos.
No final, tudo se transforma em um borrão que termina somente quando eu acordar com os gritos de novo.
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Before and After (HIATUS)
FanfictionJoey tem quatorze anos e mora em uma cabana com seus pais. Tímido e retraído, tem como único amigo, sua fiel cadela, Francine. Ele poderia ser um adolescente comum, mas sua existência esconde um terrível segredo. Sua mãe é Natasha Hoffman, jovem seq...