Não somos demônios, somos humanos não capazes de salvar crianças indefesas.

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Jeff

Uma névoa de Lírio dos Vales e algum outro perfume feminino circundava o ambiente, fria e desagradável, quase seca. Não havia calor naquele lugar. A maioria eram mulheres, garotas, meninas, bombas sendo iluminadas lentamente pela pouca luz do círculo. Por mais juntas que estivessem, de mãos dadas e rostos acolhedores, a impressão gélida só se tornou mais forte.

Uma mulher de dreads loiros enormes, que mais pareciam cobras, iniciou a reunião.

- O estupro não se baseia em um desejo sexual, não é a libido descontrolada de homens, não é porque sequer é um ato sexual. É um ato de poder, de dominação, é um ato político. Um ato que se apropria, controla e reduz as mulheres por meio da apreensão de sua intimidade.

Os membros concordaram com um aceno de cabeça. Alguns não diziam muita coisa, já outros falavam muito. Deborah era um deles.

- Olá. Meu nome é Deborah e sou sobrevivente de incesto.

Parei para prestar atenção e senti o cheiro gostoso que ela emanava, aspirando tudo de uma só vez por me fazer lembrar de Natasha quando estava grávida. Ela era sempre limpa por mim, suas roupas faziam um ruído suave, cheirando a leite, queijo e lã de ovelha.

- Começou quando eu tinha, ah, uns quatro ou cinco anos, com meu pai... meu pai passando a mão em mim.

Um bolo acometeu minha garganta e, por mais tenso que estivesse, precisei continuar ouvindo tudo que ela dizia. Era para isso que eu estava ali.

- Foi quando minha mãe foi embora que ele fez... ele disse que se não teria minha mãe, então me teria.

O desespero em sua voz era muito vivo, pulsante e terrível. O coração sufocava de angústia e pavor.

- Engravidei com quatorze e o último com dezenove. Foram dois meninos. Joshua nasceu paraplégico. Meu pai diz que é culpa minha, porque tentei abortar ele.

A voz ficou parada no ar. Me recusei por um segundo a olhar para ela.

- Eu tinha que cuidar de duas crianças e da minha irmã, mas ninguém cuidava de mim.

Dizendo isso, seu coração doeu e se quebrou. Ela desabou mais uma vez, colocando as mãos na frente da cara para que não a vissem.

Várias lágrimas correram por seu rosto quando uma das garotas esfregou suas costas, Deborah estava chorando, sufocando, mas o encontro se desenvolveu como se a melancolia e o choro fossem a norma neste círculo. Uma amiga já esperada.

- Gostaria de tirar um momento para dar boas-vindas ao novo membro de nosso grupo. Pessoal, este é o Jeffrey.

Um coro de vozes repetiram "Olá, Jeffrey", em uma saudação simples e amigável que me deixou desconfortável.

- Me chamem de Jeff, por favor.

- Então, Jeff, como esse é um lugar sagrado, onde é seguro compartilhar, convidamos você a compartilhar com a gente hoje.

- Eu... prefiro não compartilhar nada por enquanto.

Ela entendeu o meu tom, acenou com a cabeça timidamente e sorriu.

- Esta é uma reunião de terça-feira para iniciantes. Quem quiser compartilhar, levante a mão.

Uma garota levantou a mão. Ela foi estuprada pelo avô. Todos escutaram a história dela e a observei chorar, sussurrando que, mesmo após anos, ainda acha que foi sua culpa. Uma mulher na faixa dos setenta anos contou que viu seu pai estuprar sua irmã bebê e que durante anos carregava a culpa de não ter falado nada. Foi estuprada pelo ex-marido. Uma delas engravidou do tio e abortou. Um dos poucos rapazes, um gay assumido, foi estuprado pelo melhor amigo.

Uma mulher disse ter sido estuprada a maior parte da infância por seu pai. Ela não se lembrava onde ou quando, mas tinha uma memória embaçada de um grande prédio que parecia um castelo e um lance de escadas que levava a uma masmorra onde crianças despidas e adultos vestidos se moviam em meio às sombras. Uma foi vítima de sequestro e era sistematicamente estuprada e sofria abusos e maus-tratos também dos parentes e amigos do sequestrador, que a oferecia como prostituta. Seus bebês foram vendidos para o tráfico humano.

Romantizar o mal é divertido até você acordar para os verdadeiros horrores insondáveis ​​que prevalecem neste nosso mundo. Para as vozes que são silenciadas e para as crianças que "desaparecem", para nunca mais serem encontradas, mortas ou vivas. Faz você se perguntar. Se não, bem, deveria. O mal é real. Pense o que quiser, fale o que quiser, mas te aviso uma coisa: tome cuidado.

A toca do coelho é mais escura do que se pode imaginar e mais profunda do que você pode sonhar.

Eu sei disso muito bem.

Logo em seguida, um toque quente apertou minha mão.

- Não vai dizer nada, Jeff? - Deborah sussurrou no meu ouvido.

- Preciso mesmo fazer isso?

- Eu trouxe você aqui por isso.

Respirei fundo e levantei a mão.

- Decidiu compartilhar, Jeff? - a mulher de dreads perguntou.

- É, tanto faz. - dei de ombros. - Bom, eu fui estuprado pelo meu pai quando tinha cinco anos. Contei para minha mãe, mas ela não acreditou em mim.

Eu parei. Mal pude acreditar nas palavras que saíram da minha boca.

- Eu... Ela decidiu meu destino no momento em que falou para não tocar mais naquele assunto.

Levante o bumbum.

- Quando isso aconteceu, comecei a evitar meus pais. Muitas vezes ia dormir na casa dos meus avós para esquecer e fingir que tinha uma vida normal. Lá eu escapava dele. Éramos só eu, eles e os cavalos. Ah, eles. Juro que meus avós e montar a cavalo foram as coisas que mais amei nesse mundo. Antes eu era um caranguejo: escondi tudo o que tinha dentro de mim e só deixei a casca à mostra. Eu não falava. Cortei todas as minhas palavras fora.

Você gosta disso, não gosta?

- Os abusos eram frequentes desde então, até o dia que disse ao meu avô "Meu pai me machuca. Papai vai ao meu quarto de noite e coloca o passarinho dele na minha boca e no meu bumbum."

É o nosso segredinho.

Não conseguia respirar. A coisa negra no meu corpo roía minhas entranhas como um rato conforme as misérias passadas voltavam em um relâmpago. Quase estremeci, mas mantive a voz firme e clara.

- Fui viciado em drogas durante anos. A Heroína me consolava, sabe? Me fazia esquecer. Porque eu não vivia.

Passei as mãos no rosto, exausto de todos aquelas lembranças e palavras proferidas por mim.

Vamos... você quase .

- Acho que quando acordei depois da overdose, chorei não só porque minha mãe não estava lá. Chorei porque queria ter morrido.

As lágrimas escorriam e inclinei a cabeça para trás. Minhas têmporas latejavam. A mão quente de Deborah fez de novo contato com a minha e esfregou as minhas costas.

- É isso, não tenho mais nada para dizer.

- Muito obrigada por compartilhar conosco hoje, Jeff. Agora... vamos a pausa para o lanche. Que os bebedores de café aproveitem o café de graça.

Deborah disse que iria ficar tudo bem e me aninhou em seus braços como um passarinho faz nas asas da mãe.

- Vamos, Jeff. Eu pago um chocolate quente para você. - ela disse, tirando as mãos que cobriam meus olhos.

Quando olhei para ela novamente, houve uma explosão repentina de riso em meu coração, e quase gargalhei, sorrindo como uma criança.

Eu consegui.

- Ainda bem, estou morto de fome. Bora vara pau, levanta esse rabo seco daí e vamos comer.

Ela sorriu e a passei o braço pelo ombro dela, para irmos juntos até a cantina. Me sentia vivo por dentro.

Eu tenho uma amiga.

Before and After (HIATUS)Onde histórias criam vida. Descubra agora