27.

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Na segunda semana após o início das aulas, quando estava começando a me incomodar com tudo que Sebastian representava; lembro de ter escutado o barulho de algo vibrando vindo do seu lado do quarto. Também me lembro de ter tentado ignorar aquilo, não por não me importar com qualquer coisa que fosse ligada a ele — como hoje em dia penso — mas sim por não querer que ele pensasse que eu estava mexendo nas suas coisas. Mas o barulho passou a ser algo repetitivo e estava me distraindo da leitura que estava fazendo, além do fato de que pensei que pudesse ser algum tipo de emergência familiar, o que me levou a meio que ignorar toda e qualquer regra de privacidade, atendendo a chamada. Porque eu gostaria que se meus pais estivessem me ligando desesperados, alguém atendesse se eu não estivesse por perto... Porém minha intenção acabou se transformando em um tipo de bicho papão, qual me assombra até hoje. Naquela noite a voz da mulher estava tão alterada quanto hoje, gritando comigo para fugir de Sebastian antes que ele me engravidasse e depois fugisse, como fez... Com ela. Em poucos minutos soube sobre algum dinheiro que Sebastian não tinha pago a ela naquele mês e à princípio até pensei que fosse algo relacionado a um divertimento que meu colega de quarto não havia pago a quantia certa, mas então entrou na história um bebê e tudo pareceu ficar borrado e nítido ao mesmo tempo. Sebastian não estava divulgando seu trabalho como tatuador fajuto no nosso quarto simplesmente por querer mais e mais dinheiro para si, ele estava juntando para dar a ela. Para dar ao filho deles. Tinha atendido uma simples chamada e acabei caindo, sem querer, em uma história qual tinha como personagem principal um filho seu que ele nunca tinha mencionado antes. Tanto para mim, quanto para o restante do campus, porque fofocas voam e se Sebastian Carter tinha um filho, isso não seria algo que todos deixariam passar. Nunca cheguei a contar nada a respeito dessa minha intromissão para ele, porque não foi preciso.

Lembro até hoje como ele chegou de madrugada naquele dia cheio dos seus sorrisos diabólicos, que até então não era preparada para simplesmente ignorá-los, e minha imaginação boba arquitetou um mini Sebastian, com as mesmas covinhas e cabelos pretos. Por mais que boa parte de mim negue e insista que só foi por conta de que não era algo que me envolvesse, sei que foi essa imagem irracional que me fez fechar os olhos com força, só o avisando que o celular havia tocado algumas vezes. No intervalo dele alcançar o aparelho eletrônico e ler as milhares de chamadas perdidas que haviam antes da qual tinha atendido; seu sorriso se resumiu a um semblante sério. Um semblante qual nunca tinha visto no seu rosto até aquele dia, porque apesar de estarmos começando a soltar pequenas faíscas naquela segunda semana, ainda era cedo demais para um já ter conhecido o lado sério do outro. E ainda que na ligação, não lembro da mulher falar algo que tivesse dado a entender, sempre pensei que esse filho deles já estivesse aqui, mas sua barriga redonda me conta outra linha dessa história não contada que novamente estou lendo sem querer. Essa última percepção me faz respirar fundo e estou prestes a dar meia volta — para ir até, não sei, talvez retornar ao banheiro e tentar ajudar aquela mãe a domar suas ferinhas com dente de leite — quando seu olhar deixa o da mulher e encontra com o meu em uma precisão que me faz engolir no seco, como se observá-los naquela discussão fosse algo errado. Mesmo sustentando seu olhar tenho a impressão de ver seu maxilar tensionar ainda mais e antes que pudesse falar qualquer coisa; Sebastian se levanta e pega no braço da mulher grávida, a puxando em direção à saída sem dar chance dela escolher acompanhá-lo ou não. Os dois passam por mim e apesar de manter fixo meu olhar no seu rosto, meu colega de quarto não olha para mim enquanto desvia do meu corpo, marchando até a rua. No entanto, não posso dizer que não percebo o olhar que a mulher me lança, porque estarei mentindo, principalmente por conta da forma sem jeito que ele me deixa. Como se eu estivesse fazendo algo errado.

Me abraço respirando fundo, tendo a impressão que agora todos estão me encarando. Por que eles estariam olhando para você? Meus pensamentos levantam uma ótima pergunta, porque ela não precisa de uma resposta, mas tem. E é justamente essa droga de resposta existente que me faz caminhar desconfortavelmente até a mesa com o prato ainda cheio de waffles. Me sento, encarando os mirtilos submersos no melado e tento não pensar no que eles podem estar discutindo — de verdade agora — já que antes o certo seria dizer que Sebastian só estava escutando os gritos dela. Já agora tenho minhas dúvidas, principalmente por conhecer aquele semblante que surgiu no seu rosto assim que seus olhos encontraram com os meus, como se ele não quisesse me deixar ver aquilo. E é compreensível, afinal há detalhes na nossa vida pessoal que não queremos compartilhar com ninguém. A única coisa que não consigo entender é o porquê da mulher ter feito toda essa discussão. Logo aqui. Não é como se Sebastian não estivesse repassando a ela praticamente todo dinheiro que recebe. E sei disso porque várias vezes, durante vários meses o via colocando seu dinheiro quase todo em envelopes, e então o dinheiro "desaparecia". Nos primeiros meses achava estranho sua insistência com pagamentos em dinheiro físico, mas então apareceram os envelopes e tudo só ficou mais e mais confuso. Até que um dia o escutei falar algo sobre; "compre o que a criança for precisar, eu dou um jeito" em uma ligação. Ligar um ponto ao outro depois daquele dia foi fácil e também foi a partir desse dia que toda e qualquer mínima intenção de denunciar o que Sebastian fazia no nosso alojamento desapareceu, por parecer errado denunciá-lo.

Mesmo agora, que sei que nada daquilo que escutei na ligação naquele dia foi mentira; a ideia de Sebastian ser pai não parece certa. Como um livro faltando uma página. Quer dizer, qualquer história poderia se encaixar nessa página faltante, menos a de Sebastian... Um barulho de soco na mesa e algumas louças caindo chama a minha atenção e quando menos percebo estou encarando duas mulheres extremamente musculosas cuspindo — literalmente — uma na cara da outra, conforme se peitavam em lados opostos da mesa que elas e mais três pessoas estavam. E o barulho que elas fizeram não só chamou a minha atenção, como também a do restante dos clientes, que ao invés de exibirem semblantes desacreditados — como o meu — estão adotando sorrisos cheios de dentes. Alguém em algum lugar solta o primeiro grito e logo uma maré de vozes estão gritando; "BRIGA DE MULHER!". Várias coisas começam a ser jogadas no ar de um lado para o outro e tudo que consigo fazer é piscar algumas vezes desacreditada, puxando o prato de waffles para mais perto, para garantir que nada mergulhasse neles.

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