Capítulo 14

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Abdiel narrando

Ouvir Ellie dizer aquelas coisas me fez enxergar que eu também nunca tive um amigo, ou alguém da minha idade para conversar. Sempre fui muito fechado.

- Ellie, hoje sua tarde vai ser cansativa, não é?

- Sim, muito. Sexta-feira é o pior dia. O restaurante fica muito cheio, às vezes saio de lá às 2:00h. Até chegar em casa são 3:30h. Isso quando tem ônibus.

- Quando não tem ônibus, o que você faz?

- Fico sentada naquela escada do restaurante, esperando o ônibus voltar a circular. Daí por volta das 6:00h eles começam a circular.

- É serio isso? - Ouvir aquilo partiu meu coração. Como pode uma menina sofrer tanto assim? - Vamos fazer um trato? Você me liga que eu te busco, independente da hora.

- Não posso fazer isso. Não posso colocar a sua vida em risco.

- E a sua? Você pode ficar correndo risco? - Aquilo já me deixou nervoso.

- Eu já estou acostumada. Sempre tive que trabalhar de alguma forma, para ajudar em casa.

- Deixa eu te perguntar: Você já foi na praia, no shopping? Já saiu para algum lugar para se divertir?

- Não. - Ela sorriu. - Só fui uma vez na praia, quando criança.

- Então nosso suco vai ser hoje, no shopping. Você não tinha amigos, agora você tem um.

- Não posso me atrasar para o serviço. É melhor deixar para amanhã.

- Eu te levo de moto, te levo até no serviço. Não se preocupe.

- Eu não quero te incomodar. Nem quero que se ponha em risco por minha causa.

- Você não entendeu? Minha vida antes de você era monótona. Agora eu tenho motivos para curtir a vida. Eu quero fazer isso por você. Já saí várias vezes só para andar ao redor da praia. Minha vida é treino e acadêmia, acho que posso fazer algo por alguém que não seja por mim.

- Vou pensar se vou deixar. - Ela sorriu e voltamos nossa concentração no professor. Ele já tinha escolhido todas as duplas do dia.

- Amanhã vocês se reúnem para acabar de fazer o trabalho. Vocês tem até quarta- feira para me entregar.

- Amanhã você pode fazer o trabalho? - Perguntei.

- Posso sim. Minha mãe chega pela manhã. Daí na parte da tarde estarei livre.

- Será que você pode fazer o trabalho na minha casa? Lá já tem todos os aparelhos que nós precisaremos, já que vamos precisar de um microscópio.

- Acho que não vai ter problemas. Minha mãe confia em mim e eu confio em você.

- Ah, meu aniversário é semana que vem. Não sei o que meus pais vão aprontar, mas eu geralmente passo sozinho. Eles trabalham muito. Pra compensar, me dão presentes caros. Então se não for pedir muito, eu queria te pedir para passar o dia comigo, cai em um sábado, sei que é o  dia de descanso para você, mas deixa eu ficar próximo de você?

- Você vai ficar comigo no dia do seu aniversário? Você já viu como minha vida é? Não vou conseguir te dar a atenção devida.

- Só de não passar em casa, trancado já é ótimo. Estou cansado disso. - Meu olhar caiu. Nunca tive nem bolo de aniversário, meus pais nunca tem tempo para isso. Quando eles chegavam, eu já estava dormindo. Ou mandavam só uma mensagem de felicitações. Sempre tive presentes caros e a ausência deles.

- Ei, está tudo bem? Que cara é essa? - Ellie me cutucou tentando me fazer sorrir.

- Lembranças...

- Você ficou triste só porque eu não disse sim para você? - Ela tentou me alegrar. - Está bem, eu deixo você participar da correria que é minha vida. Você deve dar conta, afinal, você é um atleta.

- Sério mesmo? Obrigado Ellie.

- Você vai ficar cansado só de me olhar. Mas já que você quer adrenalina, é uma boa pedida. - Ela sorriu.

Terminamos a aula, Ellie juntou seus materiais e colocou na mochila.
Fui mais que depressa e tomei a mochila da mão dela.

- Vai deixar esses livros na biblioteca?

- Vou sim. - Ela sorriu para mim.

- Deixa que eu levo. - Ian se ofereceu.

- Você? Carregando peso? - Eu não aguentei e dei uma gargalhada.

- Você acha que não sou capaz?

- Toma aqui, leva. - Tirei a mochila do ombro e dei na mão dele. Sua mão afundou com mochila e tudo.

- Lembrei que eu tenho uma coisa para fazer. Vamos Ellie, te dou uma carona. - Ellie olhou assustada para ele.

- Você? Oferecendo carona? Está doente? - Ela aproximou o rosto do rosto dele para olhar em seus olhos.

- Para de bobeira e se afaste de mim. Já que Abdiel vai levar os livros, você pode ir logo para casa. O ônibus demora e hoje seu dia é cheio, não é?

- Ah, então você sabe tudo o que ela passa e ainda assim você a explora. Você é um ridículo mesmo. Enquanto você está comendo seis refeições por dia ou mais, ela está pulando refeições para fazer seus trabalhos. Eu sabia que você era um ser humano complicado, mas não sabia que era um ser humano lixo. Não sei porque eu esperava algo de você. Aprenda a ter empatia pelas pessoas.

- Estou tendo agora, oferecendo uma carona para ela. Já que não quer, me dê licença. - Ian saiu.

- Que cara nojento. - Dei um soco na mesa.

- Ei, calma. Não precisa ficar assim, ok? Se você for se irritar todas as vezes por minha causa , eu vou desistir de estudar nessa escola.

- Você está do lado dele? - Falei no impulso.

- Claro que não, só não quero te prejudicar. Não quero te trazer aborrecimentos. - Soltei um riso.

- Eu vou te proteger dele, eu te falei. Então se acostume com isso.

- Mas se for para te aborrecer, eu vou preferir que não me proteja. - Ela falou com os olhos tristes. Eu tento controlar, mas esse é meu jeito impulsivo de ser.

- Então é isso. Você está defendendo ele? Tá bom. - Fiz a coisa mais infantil e ridícula da minha vida. Peguei minha mochila em cima da mesa e saí porta afora. Sem olhar para trás. Desci as escadas o mais depressa que eu pude. Passei por Ian, que estava entrando no carro, e fui direto para a minha moto. Coloquei o capacete e liguei a moto, indo em direção ao portão de saída da escola.

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