Flores para um funeral

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Depois de fazer a ronda diária com os estagiários e passar as tarefas do dia, voltei a minha sala e conferi a agenda, aquela segunda seria tranquila, atenderia pela manhã duas consultas marcadas e ficaria de prontidão caso houvesse uma emergência.

Concluí o meu planejamento e por uma hora fiquei com os pés pra cima, literalmente... Tirei os sapatos de salto e deixei o sangue circular.

Às 11 horas os outros chegaram e fiz a segunda ronda, agi da mesma maneira como fiz com a turma da manhã.

Wanwand me chamou pra almoçar e eu aceitei, ficamos trocando informações sobre o trabalho e então ela me mostrou um par de alianças, pretendendo usá-las naquele final de semana em um jantar romântico com a sua enfermeira, a parabenizei por isso.

Finalmente uma mulher conseguira amarrar o coração indomável da minha amiga!

Ao voltarmos para a clínica, vi a Yoko ajudando Bam em uma das tarefas que tinha passado, quando elas me viram as observando, Bam pediu licença toda envergonhada e Yoko sorriu:

- Você quase matou alguém do coração – Ela falou ironicamente.

- Ah é? Porque? – Colei o meu rosto ao dela – Ela sabe que você tem namorada?

- Sabe.

- Ela sabe que a sua namorada não gosta de certas atitudes, como se aproveitar de um ensinamento pra tentar te tirar um pedaço? – Continuei sussurrando – Ela sabe que...

- Que a minha namorada está sofrendo com crises de ciúmes? – Ela me interrompeu.

- Eu não sou ciumenta!

- Acha mesmo que não reparei na sua cara ontem quando você conheceu a Marissa, isso depois que nos abraçamos? – Perguntou me bloqueando de falar qualquer coisa ao meu favor – Faye, eu já conheço cada expressão sua.

- E o que o meu semblante lhe diz agora? – Brinquei.

- Que se eu não parar de te provocar eu vou ter uma boa noite de sono – Ela sorriu – Então acho que eu deveria continuar, não? – Perguntou sugestiva.

- Doutora – Uma das enfermeiras me chamou, com isso fazendo eu me afastar da Yoko – Estão precisando da senhora na emergência.

Fui atender a ocorrência enquanto a Yoko voltava aos seus afazeres, estávamos tão envolvidas que às vezes ignorava a minha regra de não deixar o meu pessoal interferir no meu profissional, eu lutava pra me conter, mas a minha namorada não ajudava muito.

Quando retornei a minha sala me distrai refletindo na maneira que eu ultimamente agia, por mais que outras mulheres flertassem com a Yoko, ela não cederia... Ela gostava de mim e estávamos construindo um relacionamento sólido.

Então porque eu sentia essa insegurança?

Perto do final do expediente, as estagiárias bateram na porta e me passaram as suas atividades, avaliamos algumas pendências do final de semana e em seguida as liberei.

Noom e Bam saíram apressadas enquanto a Yoko ficou e fechou a porta:

- Não vai sair com elas? – Perguntei como quem não quer nada – Fiquei sabendo que elas marcaram de ir para um barzinho.

-Elas me convidaram – Yoko respondeu vindo em minha direção – Porém não achei interessante a proposta delas.

- Você vai me esperar para irmos pra casa?

- A doutora já acabou o trabalho? – Ela se debruçou sobre a mesa fazendo aquela carinha irresistível que me fez ficar boba.

- O que eu ainda não resolvi posso fazer amanhã.

- A doutora não me falou que não devemos misturar as coisas? – Ela continuou a provocação chegando o rosto mais perto.

- Yoko – A alertei.

- O que foi? Não consegue se controlar?

Eu me levantei rapidamente da cadeira e dei a volta na mesa, ela só ficou me observando sorridente, quando ficamos frente a frente sem nenhum empecilho eu a ergui colocando-a sentada sobre a mesa e encaixei o meu corpo entre as suas pernas.

Eu a beijei com voracidade, apertando a sua carne com as minhas mãos, sedenta por mais contato, não pensei... Só agi, e quanto mais eu devorava aqueles lábios mais fome sentia deles.

Então o celular dela tocou e ignoramos, pois estávamos cheias de segundas intenções, mas a ligação se repetiu insistentemente e eu me afastei:

- Melhor atender – Falei a contragosto.

Ela assentiu e atendeu a chamada, o rosto dela ficou pálido e suas mãos começaram a tremer, deixando o aparelho cair, eu o peguei do chão e o levei ao ouvido:

- Dona Yoko... Dona Yoko – Eu reconheci a voz, era a cuidadora da senhora Patthama.

- Oi – Respondi – Aqui é a doutora Faye, pode falar.

Escutei a mulher do outro lado da linha em silêncio com os meus olhos atentos a Yoko, o dia que a minha namorada mais temia chegou, eu já havia passado por isso, aquela dor que nos afeta até a alma.

Assim que desliguei, abracei-a fortemente e enquanto lágrimas molhavam a minha camisa, Yoko sussurrou continuamente:

- Ela me deixou... Ela se foi...

Sim, a senhora Patthama havia falecido!

...

Não houve muita movimentação no funeral, somente alguns parentes distantes e amigos próximos, fiquei a maior parte do tempo ao lado da Yoko que desde que soube do falecimento da avó não parou de chorar.

As minhas amigas e as dela também foram prestar condolências, o dono da galeria e algumas pessoas do trabalho.

Para não prolongar a situação, Yoko pediu que todo o processo fosse rápido, então depois do funeral seria a cremação, eu quis pagar por tudo, mas Yoko não permitiu, ela apenas me deixou comprar as flores que enfeitariam o caixão e uma coroa.

Eu a sentia exausta, tão frágil, quebrada por fora e principalmente por dentro, decidi que não a largaria por nada a não ser que ela me pedisse, mas ela vinha a todo instante procurar refúgio em meus braços e eu a confortava com os meus toques em suas costas, em seus cabelos e ainda mais em seu rosto, secando-o.

Faltando vinte minutos para o fim, levei a minha namorada ao banheiro e deixei-a se recompor um pouco , ela lavou o rosto na água fria da pia e ficou se observando no espelho, tal atitude a fez chorar outra vez.

Eu a abracei por trás e sussurrei em seu ouvido o quanto a amava e que ela não estava sozinha, pois eu permaneceria ao seu lado até ela se cansar de mim, Yoko sorriu fraco e se virando, me deu um beijo no rosto, agradeceu e voltou a sala onde a senhora Patthama estava sendo velada.

Eu a segui, calada, tudo que ela quisesse de mim eu faria, tudo que eu pudesse fazer ou não, daria um jeito, eu só desejava que ela ficasse bem.

Mas Yoko parou repentinamente olhando para um homem idoso parado diante do caixão, em seus olhos eu vi raiva:

- Não acredito que ele está aqui – Ela disse trincando os dentes – Como ele teve a audácia em vir?

- O que foi Yoko? – Perguntei parando ao seu lado – De quem você está se referindo?

- Daquele homem – E ela apontou para o idoso – Dele... Faye, me segura para eu não partir pra cima dele.

- Quem é ele?

- O desgraçado do meu avô!

O homem se virou e encarou Yoko, uma expressão vazia que me deixou arrepiada, não vi nele raiva, tristeza, alegria... Nada. Era como se estivesse ali só pra garantir que a senhora Patthama havia mesmo falecido, sei lá...

Ele veio até a Yoko lentamente e a abraçou dizendo o quanto lamentava, ela ficou imóvel tentando conter a raiva e eu pensei em fazer algo, mas preferi observa-los inicialmente.

Quando ele se afastou, ela pegou a minha mão e sem falar com ele sequer uma palavra foi para perto da avó, eu ainda chequei o homem, contudo ele já tinha ido embora... Bem, foi o que pensei.

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