O começo e o fim

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Fecha-se a porta do quarto. A luz ainda se esmagava, se humilhava para emprestar seu tom de mel à entortada mobília carmim da qual Anabel não tinha orgulho, mas tampouco tinha vergonha.

Seus dentes cor de creme compunham o sorriso enviesado enquanto, sentada na cama, apoiava-se no forro macio e alaranjado. Expôs de mansinho o lado direito do pescoço sem fissuras. O cabelo vermelho balançou para o lado, melindroso, diante daqueles outros dentes que surgiam debaixo de olhos sinceros, fixos, loucos que atravessam a carne da companheira. Ele já abandonara as roupas; ela também.

Encontrou um lugar para si com o joelho, recostando-se a ela por trás. Cada pedaço de pele encontrava seu par, ou assim queria fazê-lo: suas mãos subiam pelos braços dela enquanto os lábios encontravam os melhores espaços do pescoço para descansar, descansar, descansar antes de mudar de ideia e beijá-la de baixo a cima, chegando ao lóbulo da orelha com hesitação mínima, calculada com todo o engenho para fazer o coração pular uma batida.

Anabel não fingiu estar sem pressa. Tirou os cabelos da nuca com as mãos, fechou os olhos, encolheu a barriga arrepiada enquanto as mãos mornas de Gustavo faziam dali um novo lar; seu novo parque, seu novo ardor.

Tudo muito diferente da prisão ocre em que Anabel estava.

A não ser, talvez, pela amarelidão da cela subterrânea que podia ter provocado, afinal, a memória em primeiro lugar.

O ar traiçoeiro da noite se desfazia com a vitória de Roun --- ela podia senti-lo, mesmo longe da janela. Estimou que na sala em que estava caberiam umas trinta pessoas, se bem apertadas.

A porta que ela encarava há horas tinha duas fechaduras, uma perto do topo e outra da base. Quando um quadrado próximo ao chão de terra mal tratada abriu num deslizar para cima, um prato acobreado com pão, gordura quente e sal vermelho foi empurrado para dentro da saleta.

Dirigiu um único olhar para o pão antes de ignorá-lo. Abraçava as pernas, suspensas em um banco duro acoplado à parede de pedras rubras atrás de si. Não confiava naquela comida.

***

Os mesmos policiais sem uniforme que vieram prendê-la na noite passada vieram buscá-la. Estavam aglutinados no corredor além da porta, tampando o já fraco vento que vinha da única janela do lugar. Ao vê-los, Anabel repensou seu espaço: talvez naquela cela não coubessem nem mesmo dez pessoas.

Controlou a respiração, olhando e se deixando olhar. Infelizmente não era o olhar de Gustavo, que tanto adestrara. Monitorava seu castelo em Neborum com zelo total; fechara as janelas, escurecera as salas, instalara novas trancas na porta.

Acompanharam-na pelos corredores do prédio-prisão dentro do círculo coeso que seus corpos formavam; ela mal conseguia andar sem ter que medir os passos para não tropeçar em quem estava à frente.

Chegaram a uma porta no final de um curto corredor no que parecia ser o segundo andar; a formação se abriu pela frente e os cinco recuaram, bloqueando a passagem de volta.

Antes de entrar, sentiu o iaumo do entrevistador tão colado à porta de seu castelo pelo lado de fora quando o seu pelo lado de dentro. Apertou os dedos sobre a ranhura do portão, alerta.

A luz na sala era fraca. Uma cortina de goma escura aquietava o sol com seu peso, e um minério de luz vermelho que brilhava muito pouco jazia bagunçado em cima do que parecia ser uma mesa.

--- Sente-se, Anabel. --- Disse o delegado.

Anabel sentou, analisando o que conseguia ver: cabelos e olhos escuros, um meio sorriso costurado no rosto --- involuntário, fazia parecer que nasceu sorrindo amarelo e não conseguia mais parar. Seu casaco azul-marinho aparecia mais àquela luz que seu rosto cheio de pelos aleatórios nas sobrancelhas. Não o sentia mais tão perto em Neborum.

A Guerra da UniãoOnde histórias criam vida. Descubra agora