O Prólogo da Jornada de Kan

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Nenhuma luz abrandava a noite do lado de fora da tenda; por dentro, um minério amarelo desperdiçava seus esforços num canto, jogado no chão. Kan já havia desistido de tentar se desamarrar --- o esquema era complexo demais, e na mesa em frente não havia nada que pudesse ajudá-lo.

Olhava reto para nenhum lugar em particular, com o corpo nada incomodado e a mente pouco atarefada. Esperava, como fizera sem alarde nos últimos dias, por uma decisão que alguém tomaria quanto ao que fazer com ele.

Não conseguia ainda ouvir os passos do lado de fora, mas percebia o agito no ar em Neborum. Logo pôde ver o contorno de um castelo surgir ao longe. Engoliu em seco ao perceber exatamente que castelo era.

Voltou suas atenções para Heelum; alongou a cabeça e respirou fundo uma, duas, três vezes e rápido, preparando-se para o que acontecesse ali --- resistir em Neborum parecia ser inútil.

Desmodes entrou devagar na tenda. Passou a fitar o filinorfo preso sem pressa nem interesse.

--- Há coisas que quero saber. --- Ditou ele.

Kan fez que sim com a cabeça.

--- Eu posso dizer tudo. Qualquer coisa.

Kan pensou ter visto um leve estreitar nos olhos negros.

--- Nenhum escrúpulo?

--- Vou cuidar de mim como sempre cuidei, então... Aceito os seus termos.

--- Não há termos. Não há acordo al...

Desmodes parou de falar quando levou a atenção para o canto escuro da tenda atrás de Kan.

O filinorfo esticou o pescoço, tentando ver o que estava acontecendo. Não ouvia nada e, já que ainda não tinha sido dominado em Neborum, podia ver que lá não havia nenhum outro castelo para além dos dois.

--- Qual é o...

--- Quieto!

A tenda se mexia como se crianças, despreocupadas em dias de felicidade, corressem pelas laterais arrastando seus dedos displicentemente pela goma alaranjada. Primeiro ali, mais embaixo; depois do outro lado, de leve. Não havia o som de seus passos nem de suas unhas, mas Desmodes sabia que aquilo não era obra do vento.

--- Há mais de vocês aqui? --- Perguntou Desmodes, voltando-se para Kan de novo.

--- Não. Éramos quatro.

Desmodes olhou de novo, por um momento a mais, para o canto escuro.

Avançou contra o filinorfo, virando a mesa para o lado de qualquer jeito e encostando a ponta da espada em sua garganta exposta.

--- HÁ MAIS de vocês aqui?

--- NÃO!

Virou o pescoço bruscamente para o canto em que parecia ver alguma coisa; com a espada ainda em punho, saiu de perto de Kan e andou até o minério na ponta oposta da tenda.

Pinçando a pedra iluminada com os dedos, adiantou-se, pé por pé em posição de segurança, até o canto menos iluminado do lugar.

Pressionou o minério contra o tecido como se quisesse ver através dele; ali teria ficado até ter certeza de que o que viu era só sua imaginação se dentes fortes do outro lado não tivessem mordido seus dedos.

Desmodes berrou, deixou o minério cair no chão e saiu da tenda. Não precisou terminar de dar a volta nela para topar com um vulto encapuzado do lado de fora.

Num estouro sem pensamento, atacou --- com golpes amplos, cruzados, acompanhados de grunhidos de raiva, tinha certeza de que tinha atravessado o corpo envolto em vestes cinzentas à sua frente, mas a lâmina passava por ele como por vento. No fim, estava tão limpa quanto no começo.

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