A história da diferença

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A enorme casa de Kinsley era um marco para o bairro inteiro. Referência geográfica visível à distância, seu desenho grandioso, curvado e cinzento ditava o destino de outras casas importantes nos arredores: estavam fadadas a copiar a mansão do historiador se quisessem ser vistas como belas, ou condenadas a ver a pintura descascar antes de conseguirem superá-la.

Onze dias se passaram desde que Jen, Richard e Christine se hospedaram ali, mas todos os dias continuavam sendo bastante iguais. Outros moradores convidados, todos membros do grupo de reuniões do qual ninguém falava, acordavam mais ou menos no mesmo horário, tomavam café da manhã juntos à mesa (longa tábua de corvônia entrincheirada na bem ornada e caramelada sala de jantar) e eram cordatos uns com os outros. Falavam baixo, entretanto, e tão-somente com seus íntimos; de muitos, Jen e Christine sabiam apenas o nome. Richard, que os conhecia mais a fundo, não ousava fazer a ponte entre todos. Escolheu as duas como companheiras de isolamento social.

A casa possuía quartos para todos, embora Jen imaginasse que a lotação estava próxima. Havia uma ou duas salas de reuniões na qual pisaram uma vez só --- depois de receberem olhares tortos por parte das pessoas que as ocupavam, resolveram escolher outro lugar para chamar de próprio, mesmo que temporariamente. Quando Jen não estava em seu quarto, pensando no que deveria fazer quanto ao que viu no Pântano dos Furturos, conversava com Christine e Richard no banco envernizado de um dos pátios do jardim, e aquele lugar era tão particularmente encantador que gostavam de ficar por lá mesmo quando chovia; o telhado que sobrava no topo da casa impedia que ficassem molhados facilmente.

--- Mas a gente não sabe como está lá fora. --- Disse Christine, abraçando as canelas. --- Ninguém mais entrou aqui na casa para contar!

--- Não é difícil imaginar... --- Falou Richard, comprimindo os olhos. --- Não entra mais comida, então a produção mínima do centro tem que bastar. Ao mesmo tempo...

Jen ouvia a conversa de soslaio, por mais que parecesse prestar atenção. Na virada do caminho que os levaria para fora do pátio e de volta ao interior da casa, um grupo de três ou quatro pessoas conversava; uma delas era Kinsley. De pé com copos na mão, falavam sobre algo aparentemente engraçado --- riam com certa vergonha, entre dedos e desvios de queixo.

--- ... Que a cidade tem que abrir exceções logo ou vamos todos morrer aqui sem que o inimigo precise fazer coisa alguma.

--- Richard... --- Christine pareceu interromper seu fluxo de pensamentos, abaixando as sobrancelhas numa expressão absolutamente intrigada. --- Como é que estamos racionando comida e temos sempre um café da manhã daqueles na mesa? Almoço, jantar... Eu nunca comi menos aqui do que comia antes, e olha que nunca fui de comer pouco!

Kinsley encostou amigavelmente a mão livre no ombro de uma mulher coberta por um fino xale vermelho e, com um curto gesto, pediu licença.

--- Não sei. --- Admitiu Richard. --- Mas, bem, é óbvio que a cidade acreditou que podia sobreviver pelo menos por um tempo razoável sem ajuda externa ao centro, ou teria criado uma tumba para si mesma. O problema é que não contavam que tanta gente...

Jen pediu licença; deu qualquer desculpa de que não estava bem, recusou ajuda, disse que já voltava. Não sabia se cumpriria a promessa.

Procurou o historiador pelos caminhos que, lembrava-se ela, levavam ao quarto dele. Tinha uma noção apenas, não muito precisa, de onde ficava o aposento; deixou-se guiar pela audição, já que corria enquanto ele andava --- logo o alcançaria, e o faria seguindo seus passos. Estava certa: não demorou muito para vê-lo virar um corredor em direção às escadas que levavam ao terceiro andar.

--- Kinsley?

O pesquisador virou-se, sorridente como se já esperasse por ela.

--- Sim, Jen?

A Guerra da UniãoOnde histórias criam vida. Descubra agora