Voz

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--- Essa é a ideia? --- Perguntou Seimor, devolvendo as duas folhas de papel para Leo.

--- Sim.

--- Falar sobre a guerra, um assunto proibido, foi a sua ideia.

--- Sim, porque...

--- Nem mais uma palavra. --- Cortou o agente. --- Não perca mais meu tempo.

Seimor jogou as folhas no ar na direção do músico, que as agarrou em plena queda, desajeitado. Sentiu as bochechas queimarem, mas não tremia; uma respiração depois já se conformava com a ideia de que havia se conformado.

Virou-se para dentro do galpão. Ju conversava com Mumba, e Lala guardava a guitarra de Leila. Fjor, parado e virado para ele com um rosto vazio, era o único que sabia do teor da conversa.

Leo ajeitou as folhas na mão. Olhou para todas as direções uma vez mais. Para fora, para dentro e para baixo.

Correu até a charrete na hora em que a porta se fechava. Pediu para Seimor abri-la de novo.

--- Hoje enquanto vínhamos para cá eu ouvi uma menina perguntando para a mãe onde estavam os irmãos dela. A mãe disse que estavam na guerra. A-a menina perguntou o que era a guerra, e a mãe, que já estava chorando, respondeu que não sabia. Pediu pra menina não falar daquilo.

--- Comovente! --- Ironizou Seimor.

--- Seimor, as pessoas... Não vão dançar até tirar a guerra da cabeça! As pessoas querem falar sobre a guerra, querem que alguém fale sobre isso, mas não tem ninguém falando nada sobre isso!

--- Tire isso da cabeça.

Leo tirou as mãos do chão da charrete, ao nível de seu peito, e deu o passo para trás que deixou Seimor fechar a porta com força e sem aviso.

Voltou a olhar para as folhas nas mãos: pedaços já maltratados de papel amarelado que ele manteve por perto o tempo todo nos últimos dias. Chegou a montar a música com toda a banda --- embora não tenha ensaiado a própria voz perto das duas novatas e do técnico de som.

Guardou-as nos bolsos internos da jaqueta abotoada pela metade que comprara um dia antes.

Vermelha, lembrava-o bem de Leila.

***

Eu sou estranho

Eu vivo mais nesse mundo de adeus

E eu sou estranho

Do seu oi eu me faço mais uma vez

Leo cantava com as duas mãos no minério de som. Incomodava um pouco a falta da própria guitarra, mas Seimor fortemente sugeriu que ela fosse deixada de lado naquela música. O som de duas guitarras a deixava confusa demais.

E era mesmo uma bagunça. Foi a única música da época em que tinha conhecido Leila que os dois levaram para a banda; compuseram-na juntos no afã da sintonia. Era ousada e, sem ideia da bateria e do baixo (que, quando vieram, enlouqueceram tudo ainda mais), criava ritmo com uma guitarra grasnando acordes estridentes para tentar atrapalhar o dedilhado agridoce da outra, cheio de subidas e descidas, brilho num olhar esquecido. A quase constante guerra de quase solos só podia ser acompanhada por uma letra travessa, própria de uma voz adolescente em época de desafino vergonhoso, que logo se transformava em esperançoso refrão.

A guitarra regular, a bateria sólida e o baixo de linhas retas permitiam só o tempo de um sorrisinho minúsculo para brindar as memórias --- as adaptações chegaram à letra também, quase que direto do punho do agente, e fizeram "Uma história torta da letra" passar a se chamar "Mais uma vez" --- antes que Leo voltasse a cantar: "Você e eu, não estamos sozinhos. Fomos feitos mesmo num só caminho".

A Guerra da UniãoOnde histórias criam vida. Descubra agora