O navio mercante não era tão atraente e organizado quanto o de Den-u-pra, mas a sala que Dier alugou era uma exceção. Cubículo magro, azul-celeste e amarelo-canário em tinta mal distribuída, era oásis de tranquilidade num cenário em que o ruído de caixas, berros descoordenados e comandos à tripulação, quase nunca interrompidos, pareciam zombar do enjoo de Lamar.
Dier comia um prato de sopa que ofendia o nariz do alorfo. Estavam os dois à mesa no centro da saleta; um, para tentar comer de um jeito estável, e o outro porque aquela era a opção menos pior de atividade. Atrás de Dier, a porta trancada; atrás de Lamar, uma janela pequena, e dos lados duas camas em que seus corpos mal cabiam, mesmo com os joelhos dobrados.
Era preciso grande concentração para operar a colher grande sem que nada caísse, mas aquilo não parecia aplacar o tédio aparente de Dier.
--- Quantos filhos você tem? --- Perguntou ele.
--- Só um...
--- Um menino?
Lamar achou melhor engolir ao invés de responder. "Por que essas perguntas agora?"
--- Prefere não responder?
--- Eu não estou passando muito bem...
Dier assentiu.
--- Quem ensinou magia para você?
Lamar respirou fundo, formulando discursos que ele sabia que não daria. O arrepio que percorreu-lhe a espinha foi o bastante para terminar de assentar a revolta engasgada.
--- Magia alorfa?
--- Aprendeu outra?
Negou antes que revelasse mais do que queria.
--- Então?
--- Muitas... Pessoas.
--- Tem família viva?
"Viva, sim", pensou Lamar, "provavelmente".
--- Ou afastaram-se do alorfo quando descobriram?
Dier terminou de extrair o quanto podia, ou queria, do almoço. Largou tudo sobre a mesa e, num extenuar de ombros que Lamar só pôde identificar como um espreguiçamento, andou até a janela. Para não voltar o pescoço para trás e alterar o precioso equilíbrio a duras penas conquistado, Lamar passou a olhar fixo para o último naco de pepino no fundo do prato rosado.
--- Vocês, alorfos, também conhecem essa sensação. --- Disse Dier, fazendo o ouvinte contrair o rosto de leve.
--- Não entendi...
--- O jeito como eles julgam, Lamar, a partir do mundo como ele é e das coisas como elas são... Você é diferente, se torna cada vez mais diferente. E eles julgam você por isso.
"Nisso ele tem razão", pensou Lamar. Mas, por outro lado, ele era um preculgo.
--- Você não sabe nada sobre isso...
--- Claro que eu sei. Basta ter uma família para saber. Aqueles olhares, aquelas... Frases que saem da boca deles bem devagar e baixo, para que ninguém ouça o que os outros já sabem. O que todos já sabem...
Lamar não entendia nada de novo, mas tinha a sensação de que tiraria mais da conversa se deixasse de falar. Como um efeito colateral, pensou, ficaria menos enjoado também.
--- É por isso que vocês, alorfos, precisam tanto uns dos outros. Está tudo aqui. --- Lamar não viu para onde Dier apontava. --- Por isso tantos que chegam perto da ideia mas se afastam logo depois. Querem um único olhar que seja livre do peso de todas a... Aquelas... Expectativas... Eu entendo que tomem atitudes extremas. E que busquem essa comunhão.
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A Guerra da União
FantasíaNa série Controlados, a magia está em todo lugar. Os magos podem alterar os seus sentimentos, os seus pensamentos ou as suas atitudes. Não se pode confiar em ninguém. No segundo volume da série, A Guerra da União, Desmodes é o novo mago-rei e seu ob...