Brecha

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Kerinu dormia sempre na presença de Enrico, que cochilava sentado numa cadeira encostada à porta do quarto. Quando acordava, podia ir para onde quisesse; Enrico não se importava, nem o controlava. Mesmo assim, ia para os mesmos lugares, e fazia as mesmas coisas. Não tentava abrir a porta da sala. Supôs que não teria chance de fugir, mesmo que Enrico parecesse absolutamente desinteressado por qualquer coisa --- pela vida, pela morte, por aquele que deveria controlar dia e noite.

Era irritante que Byron não visitasse mais a própria casa; Kerinu estava cansado de esperar que a porta abrisse. Não podia sequer esperar por ele em Neborum, verificando já além se o castelo dele --- tinha que ser Byron, não Tornero --- surgia no horizonte. Negrume era tudo o que veria se entrasse em Neborum. O que não o impedia de entrar, é claro.

Esperava por ele, e agora afoito. Tinha um plano.

Sabia que aquele era o décimo-segundo dia de kerlz-u-sana; encontrara anotações relativas às datas no escritório de Byron, lugar que aparentemente Enrico não precisava proteger e que, por isso mesmo, Kerinu passou a visitar --- e revirar, e vasculhar --- todos os dias. Era um dia tranquilo, ensolarado; os empregados já haviam aberto as janelas e limpado os ambientes, combinação que fazia o vento forçosamente levar a prova da higiene às narinas do prisioneiro. O captor estava ali, na outra seção do sofá.

Silêncio. Apenas isso, e um rosto desapaixonado voltado para baixo, para lugar nenhum. Nenhuma palavra que o humilhasse. Nenhum gesto, nenhum esgar da cantoria de vantagem tão própria de quem tem alguém nas mãos.

Todos os dias foram assim até o décimo-segundo.

Enrico levantou os olhos na direção da porta; suas mãos continuavam vazias, caídas e abertas por sobre as coxas, mas os lábios crisparam-se com a dança das pupilas, que varriam a área como se esperassem, absurdas, que alguém invadisse a casa passando por cima das janelas com uma charrete.

Kerinu avaliou sua situação em Neborum e, quando percebeu o poder do espólico afrouxar de leve ao redor de si --- sentindo os pelos dos braços roçarem, eriçados, nas tiras escuras antes mais homogêneas que o envolviam --- teve o tempo de respirar um pouco do ar suado à frente do nariz antes que tudo aquilo se desfizesse com um impulso que quase o derrubou para trás.

A ligação se desfez pelo meio. Aturdido e confuso pelas luzes repentinas, Kerinu viu a mesma onda negra vindo em sua direção, tubo maleável correndo pra alcançá-lo e enredá-lo de novo, que mais uma vez foi desfeita antes mesmo de chegar no alorfo.

Kerinu olhou para o lado e viu de onde veio a faca que, cravada no braço esquerdo do iaumo de Enrico, interrompeu seu ataque.

Enrico correu em direção a ele mas teve que parar quando uma bola de espinhos passou rasante em frente ao seu rosto; Caterina fazia o mangual girar rápido no ar. Não atacava Enrico, que estudava a inimiga num olhar réptil com olheiras fundas, mas não permitia que ele adivinhasse a posição da arma ao mudá-la constantemente de velocidade.

Kerinu ergueu-se do sofá e correu para abrir a porta, com Enrico percebendo tarde demais suas intenções. O espólico tentou ler o ritmo da arma da alorfa e correr por sua esquerda em direção ao alvo, mas ela ergueu o antebraço, fazendo a corrente girar por ele e atingir o ombro do mago.

Enrico agarrou o cotovelo de Kerinu, puxando-o para o piso da sala da mansão. De pé, desembainhou a espada: sabia que, caído como estava em Neborum, só podia ser mais rápido em impedir o alorfo em Heelum.

Kerinu desviou-se do ataque rolando de lado, dando um chute desajeitado que conseguiu derrubar Enrico pelo tempo que precisava para estender seus tentáculos negros na direção do iaumo caído.

A Guerra da UniãoOnde histórias criam vida. Descubra agora