Sequer ousou se perguntar o que aconteceria se parasse, caísse no chão seco e esticasse braços e pernas de qualquer jeito, pensando em Caterina, Kerinu, Myrthes e Ramon. Deitado, com a cabeça desconfortável, talvez até tonto, diria a si mesmo que não entendia muito de prisões, mas que o conceito começava a ficar familiar. Preso por alguns dias em Prima-u-jir, de iaumo soterrado por um bom tempo em Neborum, estava preso agora também aos próprios pensamentos repetitivos.
Kerinu havia se sacrificado por ele. E ele, no calor da batalha, aceitou o sacrifício de bom grado. Quem faria uma coisa dessas? Seria mentira demais dizer que não poderia, na verdade, ter feito outra coisa?
Sentiu uma dor chata na parte de baixo da garganta e uma corrida de gotas de suor para chegar à gola das vestes azuladas. Ele não estava deitado no chão e não podia deitar. Mas abria a porta para aqueles pensamentos, esperando que um dia pudesse não se sentir tão culpado, tão pequeno e tão inútil quanto agora.
***
O lado bom das colinas naquele trecho da estrada era que sempre havia uma forma de se esconder com relativa rapidez se alguém chegasse. Muitos foram os mercadores, algumas foram as charretes de transporte, e felizmente nenhuma da polícia ou do exército, que passaram por ali. Pensou que se conseguisse apenas andar com a mesma rapidez com a qual se escondia, chegaria mais rápido ao destino. Ou talvez tivesse um infarto, já que seu coração quase saía pela boca cada vez que o chão tremia por causa dos yutsis.
À noite, desistiu da ideia de caminhar pelo caminho e se esconder nas laterais --- parou em definitivo nas margens e assistiu as charretes cortarem o caminho na escuridão. Cada uma carregava um minério de luz, que trepidava e fazia as sombras das árvores se mexerem num frenesi ardoroso. Lamar não gostava daquelas sombras.
No outro dia continuou fora da estrada. Logo chegaria à Fortaleza Sul da cidade, e deveria passar o mais longe dela possível de qualquer forma. Ao cruzar uma rua que saía da estrada principal, seguindo para o Leste, lembrou que alguns de seus ex-alunos moravam em uma jir perto dali. O destino da estrada era justamente a jir Vigia, uma grande confluência de casas, comércios e até prédios como postos policiais e um pequeno teatro. Lugar mais próximo à Fortaleza Sul, a pequena jir havia se tornado uma verdadeira potência regional.
O caminho até lá seria fácil. O vento gelado já dava lugar, pouco a pouco, a uma sensação não tão irritante. Passou por algumas plantações que foram ficando cada vez menos selvagens e aleatórias. Ao entrar em uma pequena malha de ruas, pegou um caminho para o Norte, onde encontrou a casa de um ex-aluno: pequena, baixa, com paredes alaranjadas e coberta por telhas vermelhas com pintinhas negras.
Foi recebido por um garoto. O próprio aluno surgiu de algum outro cômodo e fechou a porta numa batida tão rápida que Lamar quase não o viu. Foi embora ouvindo-o ralhar com o menino, explicando que ele não deveria mais abrir a porta para aquele homem.
Lamar encontrou uma ex-aluna, que foi tão receptiva quanto o último. Depois encontrou o terceiro, meio que por acaso. Ele andava de volta para casa e Lamar o seguiu. Ele não quis que Lamar ficasse, e olhava para os lados como se pudesse ser o alvo da prisão daquela vez. Lamar viu que ele não morava sozinho; na verdade, tinha alguns filhos e morava com uma companheira que não parecia de todo contente com sua presença, olhando de relance de quando em quando. Lamar poderia jurar que pelas costas ela fazia gestos para o rapaz. Por mais que não o quisessem ali, permitiram que Lamar levasse algo para a viagem. Lamar não pegou muito --- não havia muito para pegar, de qualquer forma --- e foi embora agradecendo pouco para não se alongar.
Saiu de lá sentindo-se como um rato. Um ser desprezível. Derrotado, falido, fracassado; sua cabeça dava voltas e arranjava novas formas de se insultar, com o vocabulário rareando aos poucos. Não tivera tanto contato com os ex-alunos assim, ou pelo menos não se comparado ao tempo com o homem que deixou pra trás em Prima-u-jir... Mas a forma como evitaram-no, preferindo dizer que nem o conheciam...

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A Guerra da União
FantasíaNa série Controlados, a magia está em todo lugar. Os magos podem alterar os seus sentimentos, os seus pensamentos ou as suas atitudes. Não se pode confiar em ninguém. No segundo volume da série, A Guerra da União, Desmodes é o novo mago-rei e seu ob...