Equipes

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Eva e Tadeu desceram as escadas. Galvino já esperava lá embaixo, devidamente paramentado. A mulher e o filho usavam longas capas azuis. Tadeu precisava da sua para combater os calafrios que apareciam, chatos e incômodos, cada vez que ele pensava no que ele estava prestes a presenciar. Vinham da base da coluna e alcançavam as olheiras fundas que a mãe tentara, em silêncio e com mãos menos brutas que em outras vezes, disfarçar com maquiagem.

Pensou mais uma vez. Afastou toda culpa e todo remorso, porque se aquilo tudo o alcançasse de verdade, sentia que ia vomitar.

Deu o último passo gelado para fora da escada e contemplou o espaço à frente da barriga do pai, que com um "vamos" sussurrado introduziu mais uma série de frases que Tadeu não escutou. Não escutava nada.

Tentava se concentrar em coisas felizes, mas Anabel manchara sua vida inteira com promessas não cumpridas, pedidos de promessas, a depressão repentina; com a muralha desumana que a própria indiferença aprovava com um sorriso mórbido.

Até na morte Anabel não me deixa em paz. --- Era quando pensava assim que Tadeu se reprimia, uma voz interna contra outra. "Lutar", pensava, lembrando das aulas com Gabriel. "Ele quer que eu lute. Ou é ela ou sou eu". Ou era razão que lhe falava ou era vazão de um desesperado, pensava.

A execução de Anabel era um evento único, singular, contradição aparente que se resolvia no resumo da retórica de Al-u-ber frente à guerra que se aproximava. Apoiavam os magos, e no entanto lá estava o povo, vivenciando a execução de uma maga nas mãos dos magos. Isso fazia sentido porque era, afinal, a extirpação do lado ruim do grupo. Os maus elementos dentre os magos. Aqueles que, ao saírem da margem que as regras justas permitiam, não podiam continuar vivos ou incentivariam, através da impunidade, o mau uso do conhecimento da elite.

A charrete tinha dificuldade de avançar pelas ruas, apinhadas como estavam. A praça em que a execução seria feita ficava próxima à entrada do morro em que ele e Amanda se encontravam, e foi escolhida por ser provavelmente o espaço mais aberto da cidade --- que, ainda assim, não oferecia a melhor das visibilidades.

Mas talvez as pessoas não estivessem lá para isso. Não precisavam ver com os próprios olhos, mas só estar com o próprio corpo; participar, ouvindo as pessoas mais à frente confirmar o resultado previsto.

E depois? Ficariam uns na casa dos outros, discutindo o que aconteceu, ou voltariam para as próprias casas? Encerrariam o dia, impediriam que qualquer coisa acontecesse depois de tamanha brutalidade, ou simplesmente ririam da má sorte da abusada que teve o que mereceu e voltariam a seus afazeres diários?

A audição de Tadeu voltava aos poucos, e ele percebia o quão comuns eram todas aquelas pessoas. Não berravam, aplaudiam ou se agitavam como no dia do discurso. De braços cruzados, conversavam e sorriam; fofocavam sobre uma outra coisa qualquer --- coisas da vida, não da morte --- formando um burburinho que ardia quente no ouvido de Tadeu.

Ardia porque as mesmas pessoas estariam ali, daquele mesmo jeito, se fosse ele no lugar de Anabel.

***

A plataforma de enforcamento ficava em frente aos fundos de um castelo residencial, limite norte da praça. Nas janelas, dezenas de pessoas se apertavam para ver a maga dar o último passo em frente a uma plateia ainda mais ávida. Um pouco mais longe, numa arquibancada também provisória e separadamente protegida, ficariam os parlamentares e outros magos eminentes, como o delegado especial que cuidara de Anabel até ali. Deprimida e esquálida como a prisioneira estava, ele temia que mesmo a própria morte teria que ser incentivada, com guardas arrastando seu corpo fraco até o palanque. Isso adicionaria um toque desnecessariamente cruel ao evento, pensava ele; De um lado havia a ideia de uma maga terrível pagando por seus crimes; de outro, uma maga destruída por dentro sendo enfim destruída por fora. Eram cenários antitéticos.

A Guerra da UniãoOnde histórias criam vida. Descubra agora