A noite abraçava Heelum de um jeito diferente no campo. Para compensar o jeito como fazia o mundo parecer mais hostil, e cada pessoa sentir mais solidão, trazia mais (e mais brilhantes) estrelas que nos centros. Trazia também um som contínuo de fundo que, se Rainha achava no início um tanto ameaçador, logo mudou de ideia. Passou a achá-lo reconfortante.
Havia muito a ser feito, pensava ela enquanto arrumava e desarrumava o cabelo com as mãos. Estava sentada à frente da janela mais ampla do castelo, num saguão secundário no térreo em que havia vários sofás e uma lareira. Vermelho e bem iluminado com minérios de cores quentes, mostrava que o salão fora feito para a época que já acabava --- o frio ia embora, e os móveis foram rearranjados por ela para permitir que se sentasse em uma poltrona e descansasse os pés em outra.
Não precisava apenas levar adiante toda a parte documental do processo de divisão de terras, mas antes saber como dividi-las --- uma negociação que, descobrira já no primeiro dia em que se envolvera de fato com ela, seria complexa. Envolvia tradicionais brigas entre jirs. Nunca achou que aquele lugar era de fato assim, mas saíra da reunião com uma terrível dor de cabeça e uma mágoa que a fizera dizer, autoritária, que não queria mais saber de nada: Lenzo é que cuidaria de tudo para ela.
Sorriu por um tempo, até pensar que se parecer com seu pai não era exatamente engraçado.
Ainda havia decisões mais difíceis a tomar. Afinal, foi até o castelo para desfazer os nós que o pai fez e que gangrenavam o povo daquela região. Mas aquele era efetivamente seu lugar, no centro daquela confusão? Uma redenção que talvez não fosse responsabilidade sua para além da que ela se forçara a ter? Poderia continuar vivendo naquele castelo, das rendas relativamente mais honestas herdadas do pai? Aquele amontoado de pedras bem organizadas --- poderia aquilo ser seu lar?
E se não fosse, para onde iria?
Jamais poderia fazer parte de uma jir como aqueles da região --- mas certamente acreditava que havia uma razão para as pessoas se juntarem em grupos na imensidão do campo, não estando de antemão empacotados no centro da cidade. Quando a noite desce, ficar sozinho é um pouquinho terrível. Mas por enquanto estava bem; confortável e debaixo de um teto largo.
--- Rainha.
Ela se virou, assustada, a voz masculina desconhecida espalhando um choque pelo corpo. No corredor havia um homem sério e parecendo bem constituído que fixava nela, sem vergonha, seus olhos grandes. Descansava as mãos nos bolsos de um casaco marrom escuro. Tinha lábios finos debaixo de um nariz grande, e suas orelhas se escondiam atrás do cabelo suado preso debaixo de um chapéu marrom claro.
Rainha imaginou se Lenzo voltaria logo. Funcionários que dormiam no castelo ainda estavam longe demais naquele exato momento.
--- Você é... --- Sugeriu ela.
--- Administrador do seu pai... --- Respondeu ele. --- Meu nome é Haro.
--- Não, o... O seu nome é Kahae.
Rainha podia sentir seu levantar de sobrancelhas.
Ela sabia que o pai só tinha um "administrador". Seu capataz, seu fiel por rosanos, aquele que fazia todo tipo de coisa para o pai enquanto ele estivesse no centro.
--- Não. --- Respondeu ele, balançando a cabeça ao mesmo tempo.
Deu alguns passos lentos em direção a ela, que se conteve para não gritar ou fugir --- recuou um pouco até perceber que ele havia parado. Estava a dois, talvez três passos dela; conseguia sentir seu cheiro, ver os detalhes da pele marcada em que pequenas linhas formavam grades como nas palmas das mãos.
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A Guerra da União
FantasyNa série Controlados, a magia está em todo lugar. Os magos podem alterar os seus sentimentos, os seus pensamentos ou as suas atitudes. Não se pode confiar em ninguém. No segundo volume da série, A Guerra da União, Desmodes é o novo mago-rei e seu ob...