Vulnerável

1 0 0
                                    

Eva já mancara o corredor inteiro desde que saiu da cama, mas foi ao chegar na beirada do primeiro degrau que finalmente sentiu a preguiça insidiosa que lhe transformara numa tola indolente.

Pressionou a boca por se recusar a gemer --- mas ainda assim os joelhos doíam a cada passo, suas micro-engrenagens e polias gritando a cada impacto; as costas, arqueadas como jamais estiveram, pareciam não querer mais aguentar o peso dos ombros. Nunca precisara tanto do corrimão, mas venceu a descida e caminhou, torta, até uma das cadeiras da sala de jantar.

--- André? --- Perguntou, projetando a voz para o corredor ao apoiar a cabeça na mão esquerda.

O visitante, que ia das escadas à porta de saída, desviou do caminho e entrou no espaço entre as salas.

--- Olá, Eva... Estás com algum problema?

Deu um sorriso frágil ao arrancar-se da posição de cansada.

--- Eu quero conversar com você. Pode sentar-se aqui comigo?

Ele confirmou, tomando lugar à mesa.

--- Outro dia à mesa você disse que já foi ajudante de um médico.

--- Sim, é verdade.

--- ... Então... Suponho que a morte não lhe seja um conceito tão alheio.

***

Barnabás subiu quase ignorando seu próprio andar; podia arriscar um tropeço nas escadas de verdade se fosse o preço para não voltar à situação que conseguiu a muito custo evitar há vários rosanos. Tinha que se certificar de que aqueles castelos estavam mesmo separados por aquela distância toda.

Abriu a porta sem bater, o barulho do vento em corrida desabalada quase assustando os dois.

Viu Amanda sentada à cama e Tadeu de pé em frente à janela. Ele olhava para a rua, com as mãos nos bolsos, e se virou devagar para cumprimentá-lo.

Olhou dele para a filha; ela o olhou de volta, com as sobrancelhas levantadas.

--- O Tadeu veio me devolver um anel que caiu naquele dia.

--- O anel simplesmente caiu da sua mão, filha? --- Perguntou ele.

Amanda bufou, cortando o olhar entre eles.

--- Sim, pai, o anel caiu.

Ele assentiu, sorrindo como um curativo quente.

--- Olá, Tadeu. Seja bem-vindo.

--- Obrigado. Senhor. --- Adicionou. --- Faz muito tempo que não converso com a Amanda, e... --- Limpou a garganta, ficando nervoso só de achar que poderia parecer nervoso. --- Estamos conversando sobre... As coisas que aconteceram desde que a gente se viu pela última vez.

--- Sim, é claro. --- Respondeu Barnabás, forçando um sorriso um pouco mais quente. --- Espero que agora que você... Bem, já deve ter começado seu treinamento mágico, entenda que não é sábio ficarem muito próximos, você e minha filha. Especialmente da forma como queriam ser há alguns rosanos atrás.

--- Pai! --- Repreendeu Amanda. Tadeu quase riu ao pensar o quão bem ela interpretava o papel; lembrou-se de que deveria parecer grave e constrangido.

--- Isso não é uma brincadeira. --- Repetiu Barnabás, levando Tadeu a crer que não era, afinal, um ator tão bom quanto ela. --- Espero que entenda que não vou permitir que o futuro de Amanda seja comprometido.

--- Eu sei, senhor. --- Respondeu Tadeu, mal conseguindo olhá-lo nos olhos.

Barnabás demorou-se mais algum tempo antes de sair do quarto. Os aprendizes se olharam imediatamente, tensos, tendo imaginado que assim que a porta se fechasse poderiam rir e comemorar a aceitação de Barnabás em relação à visita.

--- Fique longe. --- Alertou Amanda, em murmúrios. --- Ele ainda está prestando atenção...

--- Eu não posso mais voltar aqui.

Ela concordava, e ele observou com mais atenção o anel que esteve em sua posse aquele tempo todo.

--- Como você teve a ideia tão rápido? --- Perguntou ele.

--- Que ideia?

--- A de me... Entregar esse anel. Para vir aqui te devolver.

--- Ah... Na verdade eu estava tentando te achar aquele dia só pra fazer isso, antes que... Antes do que aconteceu.

--- Por quê?

--- Porque eu não ia poder mais te ver nos nossos dias, então... Eu precisava de alguma desculpa pra gente se ver.

Tadeu se aproximou, inclinando-se o quanto podia para entregar o anel para Amanda sem fazer parecer, em Neborum, que os dois estavam perto demais. Pensou em perguntar se eles poderiam começar a se ver de novo como amigos, sem a necessidade de segredos, pelo menos quanto a estarem fisicamente num mesmo espaço --- ainda que provavelmente de maneira regular, previsível e supervisionada.

--- Tadeu, uma coisa... Me incomodou muito. --- Disse ela, mais rápida. --- Por que é que logo o Gustavo, que tinha até sumido da cidade depois de me atacar... Resgatou a Anabel?

Tadeu tentou olhar para ela sem dar sinais de que poderia mentir, o que provavelmente teria que fazer. Descobriu que acabou não piscando e acabou desviando o rosto, ainda mais nervoso do que quando esperava pela entrada de Barnabás na sala.

--- Logo a Anabel? --- Continuou Amanda. --- Que era a sua amiga? É uma coincidência enorme!

--- É.

--- Tadeu?

--- É que... Anabel s-sabia. S-sobre a gente.

Amanda engoliu, retificando a coluna; era como se identificasse um cheiro novo, e podre, no próprio quarto pela primeira vez.

--- E o que ela sabia?

--- Eu... Tinha... Ela tinha me contado que ela estava com o Gustavo. E-e aí eu... Contei que... Eu estava com você. E a gente ia p-poder se ajudar!

Os olhos de Amanda se expandiram quando ele terminou de falar, embora os lábios não tenham esperado até então para começar a tremer furiosamente.

--- POR QUE você não me CONTOU?

--- Shh, Amanda! --- Disse Tadeu com uma onda de calor invadindo-o, urgente.

--- POR QUÊ?

--- Porque eu fiquei sabendo um dia antes de ela ser presa, e-eu não consegui te encontrar!

--- Mas que tal quando você contou pra mim que ela foi presa? --- Terminou a pergunta em duas risadas esbaforidas. --- Ela podia, ela podia... Ela podia acabar com as nossas vidas, Tadeu!

--- Eu sei, mas depois de um tempo nada aconteceu, e-e eu s-só...

--- Você confiou nela, Tadeu, mas eu queria que tivesse confiado em mim também!

Tadeu voltou-se para a segurança da janela, onde não teria que sofrer com a face avermelhada de Amanda --- e ainda havia a brisa para aliviar aquele calor de nudez que, contraditório, o deixava claustrofóbico. Afinal, finalmente teve coragem para deixar de lado as mentiras que vestia (ainda que nem todas) e aquele era o resultado: uma espécie de prisão.

Sentiu arrepios ao pensar que a única forma de deixar aquilo pior seria se despir mais; contar toda a verdade, tudo que fizera e principalmente o que quis fazer. Quando finalmente achava que a magia poderia afinal solucionar seus problemas, concluiu apenas o mesmo de sempre: ele odiava tudo aquilo.

--- Isso não aconteceria se a gente já fosse melhor. --- Disse ela, com a fala dura. --- Nós dois. O Gustavo é bem melhor que eu e a Anabel é melhor que você.

"Mas foi ela que foi pega", pensou Tadeu, surpreso com o próprio orgulho ferido.

A Guerra da UniãoOnde histórias criam vida. Descubra agora