Rasgo

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Hoje foi o primeiro dia que me senti longe de casa. É estranho, mas esse tempo todo... Talvez--- Acho que se eu viesse sozinha isso ia ser terrível. Muito pior.

É impossível ficar acordada muito depois da hora que escurece, porque a mata é densa e a luz das estrelas, que já é mais ou menos fraca em qualquer lugar de Heelum, nem chega. É um breu, e os dois já me avisaram que eu não devia usar o minério à noite, que é perigoso. Essa foi a nossa primeira briga. Eu não queria brigar com nenhum deles, porque me sinto como se fôssemos só nós três, e realmente somos tudo que temos, uns aos outros, então brigar aqui é como fazer inimigos com as únicas pessoas vivas. Eu sei que isso não é verdade, mas eu me pergunto se---

Esse diário não pode ser o lugar para desabafar coisas bobas. Uma pesquisadora uma vez me disse que essas experiências de viagem têm que ser escritas, que são importantes, mas não posso ser desonesta comigo mesma e usar isso como desculpa para escrever o que eu quiser. Esse é um instrumento para fazer anotações importantes sobre os animais, sobre o local, sobre a vida deles. Tenho que separar as coisas.

Amanhã vamos entrar mais fundo. Em Rirn-u-jir disseram que eles vivem bem perto das regiões montanhosas, o que é péssimo para nós, mas eu não sei. O pântano parece gigantesco, e o mapa também diz que ele é, e eu sinto que eles estão por perto. Quer dizer, talvez seja só intuição, alguma lógica que eu ainda não entenda de maneira explícita. Ficar chamando isso de instrumento, de método, e depois falar de intuição, é ruim, mas é o que sinto.

Não tenho sentimentos, ou muitas expectativas. Fora isso de eles estarem perto. Praticamente tudo que ouvimos sobre os monstros, todos eles, são segredos cochichados de geração em geração; estereótipos aumentados por peças de teatro e histórias. Estou entrando na jornada de mente aberta. Só não queria que fosse com o coração tão esvaziado também.

Estou exausta. Escrevendo isso antes de a luz acabar, mas suspeito que hoje vai ter mais luz. Estamos numa área mais aberta, num banco de raízes e árvores mais robustas em meio a uma região alagada. Desde ontem (que foi dia 39) nos revezamos durante a noite. Já vimos muitos animais estranhos, especialmente emergindo da água; vimos cobras, e o barulho da noite, que é muito difícil de ignorar, dá a sensação de que estamos cercados o tempo todo.

Andamos por bastante tempo, mas ainda não achamos furturos. Talvez eu estivesse errada com a minha "intuição" (provavelmente) e eles só vivam perto das montanhas...

Hoje Gregor nos mostrou um minério dentro de uma árvore. Nunca tinha visto nada parecido, e é bonito. Era um minério de luz vermelho.

Eu e o Richard somos a pior parte da viagem. Gregor está bem; talvez tenha treinado para nunca demonstrar desânimo, dor, cansaço ou nervosismo. Mas eu estou frustrada. Andar nesse terreno drena nossas energias muito fácil, e não podemos pedir para Gregor arranjar mais comida do que já está arranjando, porque é realmente difícil e já somos agradecidos pelo que ele consegue fazer. E o que consegue fazer não é muito bom, em termos de gosto, mas é o que temos.

Nenhuma expedição que participei foi igual a essa. Acho que nenhuma significou tanto para mim. Talvez não tenha nem a ver com a dificuldade em si, ou com a falta de pistas.

Richard e Gregor não conseguem concordar quanto ao quanto já andamos, e em que direção. As montanhas já aparecem bem, então sabemos para onde fica o Sul, mais ou menos. É bom anotar isso porque--- Temos deixado marcas em alguns lugares estratégicos por onde passamos. Não queremos nos perder, queremos saber se já estivemos em algum lugar, e mais importante, de onde viemos, para depois poder voltar. Não sei se vai ser o caminho mais curto, então ainda temos isso a decidir, mas pelo que entendi Gregor pode se localizar melhor. Mesmo se formos em zigue-zague seguir algum grupo de furturos.

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