Capítulo 27

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Fiquei a dormir na mesma tenda que a Clara e a Marta. Tivemos de construir as nossas tendas, com a ajuda e conhecimentos da tribo, para que não dormíssemos ao relento.

Todos nos juntámos para o jantar, que mais pareceu uma celebração. Todos os índios cantavam e dançavam à volta de uma enorme fogueira. Isto devia-se, pelo que me contou a Maria, por o rei os ter agradado com a sua presença e por eu ter voltado para eles.

A festa iria durar a noite toda, mas eu não consegui aproveitar nem metade. De tempos a tempos, dava por mim a mexer no colar, a olhar para ele, a questionar-me como tudo teria sido diferente se esta guerra não tivesse existido.

– O que tens? – Perguntou-me a Clara, ao se sentar ao meu lado. As chamas da fogueira refletiam-se nas suas feições, vincando-lhe o rosto, expondo uns olhos castanhos brilhantes.

– Eu... não tenho nada... ou melhor, tenho, mas... não acho que falar resolva as coisas.

– Resolver, não resolve, mas alivia o estado de espírito carregado em que te encontras.

Olhei para ela. Ela tinha razão, claro. Eu precisava de falar com alguém. Alguém que não o Fábio, o Samuel e muito menos o Alexandre. Necessitava de alguém que olhasse para mim, não como se soubesse mais do que contava, mas sim com compreensão, estando tão "às aranhas" como eu mesma.

OK... o que é que tu farias se descobrisses que, de um dia para o outro, os teus pais não são quem dizem ser, és procurada pelos inimigos dos teus verdadeiros pais e que tens alegados poderes que, para ressaltar, estão ativos, mas não dão sinais de vida?

– Exatamente o que sinto agora.

– Hãn?

Ela arqueou as sobrancelhas para mim.

– Eu descobri que sou algo mais do que uma simples estudante do último ano do liceu. Que faço parte de algo maior do que eu mesma.

– É verdade, o Alex decidiu que era melhor contar-me amanhã como é que vocês entraram neste jogo de doidos.

Ela sorriu suavemente. Notava-se que estava mortinha por me contar, mas conteve-se. Era uma novidade nela.

– Bom, eu estou exausta, este dia foi demasiado para uma singela criatura como eu assimilar sem ficar morta de cansaço. – Levantei-me e limpei a terra do rabo. – Até amanhã.

– Adeus, dorme com os anjos. – Não sei se ela percebeu até que ponto aquela frase me incomodou. Era tão... conveniente.

Dirigi-me para a minha tenda. Ao chegar à entrada desta, estiquei a mão para afastar a capa que servia de porta. Nem consegui lá entrar. No momento em que levantei a mão, uma mão forte agarrou-me o pulso e puxou-me para as sombras.

Quis gritar. E ia fazê-lo, se não fosse o facto de ter a mão de Alexandre a tapar-me a boca. Estava com um dedo encostado aos lábios a pedir-me silêncio. Ele estava a levar-me para o interior da floresta.

Quando ficámos relativamente longe do acampamento, o Alex encostou-me a uma árvore.

– Se eu tirar a mão, prometes que não gritas?

Olhei para ele com um olhar sanguinário. É claro que iria gritar. Tecnicamente, ele tinha acabado de me raptar!

– Eu só quero falar contigo, mais nada.

Que mais é que ele teria para me dizer hoje? A não ser que ele tenha vontade de adiantar aquela explicação sobre os meus amigos, não percebia o que é que ele me queria dizer.

Fiquei quieta à espera que ele tirasse a mão da minha boca. Ainda demorou um pouco, mas lá comecei a sentir os seus dedos a afastarem-se dos meus lábios. Um formigueiro permaneceu no seu lugar.

Coloquei as mãos nas ancas.

– Que me queres agora?

Ele nada disse. Olhava-me, simplesmente. Decidi encará-lo do mesmo modo.

A nossa pequena conversa de olhares durou mais do que eu suspeitava.

– Fiquei a pensar no que tu me disseste.

– Eu disse-te muita coisa hoje, tens de ser mais específico.

– Sobre tomar as minhas decisões. De termos escolha.

– Sim, o que é que tem?

– É que, sabes, passei tanto tempo a seguir ordens que... que...

– Fazes o que os outros esperam de ti?

Ele olhou para o chão. Ou pelo menos parecia. Estava demasiado escuro para perceber.

– Mas contigo, parece tudo diferente. Aquilo que é suposto eu fazer não é o mais indicado para ti. É como se tudo o que sempre fiz fosse errado, quando olho para ti.

– Ouve, eu entendo. Acontece o mesmo comigo. É que... eu até posso ser esta rapariga amorosa, que toda a gente acha que faz sempre o mais correto, mas nem sempre tenho respostas amorosas para dar... e isso é o que as pessoas não entendem. Não enxergam que eu também tenho os meus maus momentos. Aos olhos dos outros, é como se eu não os pudesse ter, tenho de ser sempre sorrisos e falas educadas. Parece que não posso sofrer, não posso ser impulsiva, não me posso zangar. Não me é permitido.

– E porque dizes isso?

– Pelas reações que vejo. Pelo que vejo nos olhos das pessoas, pelo que me dizem. Bem, não propriamente com palavras, não normalmente. É como se todos me pudessem magoar, e acredita, magoam muito – Vi-o olhar-me. Tinha um brilho de... dor? –, porém eu não o posso fazer, porque é incorreto.

– Isso não é verdade, Sofe.

– É, aos olhos dos outros. E tu concordas comigo, vejo-o nos teus olhos.

Aproximei-me dele. A dor nos seus olhos fazia o meu coração apertar-se de mágoa. Não aguentava vê-lo daquela forma, tão... vulnerável.

Quando dei por mim, estava com o rosto encostado ao seu peito e os braços em redor do seu tronco firme.

– Mas sabes o que me mantém em pé? Me mantém rija? – Perguntei-lhe.

Esperava uma resposta verbal, mas o que obtive dele foi uma resposta forte ao meu abraço e o seu rosto no meu pescoço. Sentia... água na curva do pescoço. Ele estava a chorar.

– Penso em todas as coisas e momentos que me façam feliz. Os meus amigos, o pôr-do-sol, o oceano... Porque não tentas? Quais são as coisas de que mais gostas, memórias de que te lembras?

– Não tenho muitas coisas que me prendam. Não tenho memórias que considere felizes.

– Alguma coisa deve haver. Tem de existir algo que te faça sorrir sem dares por isso.

Senti os lábios dele esboçarem um sorriso, mas nada disse. Em vez disso, ergueu a cabeça.

– Devias ir dormir. Os próximos dias irão ser tão ou mais extenuantes que o de hoje.

– Estás a brincar, certo?

– Não. Mas sei que tu vais conseguir. Eu acredito em ti.

Desembaracei-me do seu abraço e olhei para ele. A sua mão direita tocou-me no rosto. Esperei por algo... sinceramente, esperei que ele me beijasse como naquela noite, só que nada aconteceu. Limitou-se a acariciar-me o rosto, olhando-me como se quisesse gravar aquela parte de mim. Depois baixou os braços.

Virei-me para voltar para a tenda. Ainda dei uns quantos passos, até que olhei por cima do ombro. Ele tinha desaparecido nas sombras.

– Foi bom falar contigo... 










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