Capítulo 69

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Anahí

O apartamento tinha muito mofo, o que me fez tossir desde que entrei. Ainda existiam alguns móveis e caixas com pertences que haviam ficado para trás na minha mudança repentina para a casa de Alfonso.

Por sinal, pensar nele me deixou mal. Naquela manhã eu não tive coragem nem de manter uma conversa digna. Acabei achando melhor ficar calada sem muito assunto, para poder esconder a culpa que sentia do episódio com Ricardo na boutique. Alfonso deve ter percebido a minha gafe durante o café da manhã. De joelhos analisando a caixa de papelão, pausei e dei um murro em alguns panos sujos pela lembrança.

Balancei a cabeça para afastar o que tinha pensado e me concentrei em remexer as tralhas deixadas para trás. Enquanto Dulce não chegava me ocupei com aquilo. Encontrei fotos antigas, roupas de quando era dançarina, acessórios e alguns pertences que traziam boas lembranças, essas que me fizeram sorrir, já jogada no chão. Continuei vendo tudo até passos ecoarem pelo ambiente praticamente vazio. Me virei esperando ver qualquer pessoa ou coisa, menos ela.

Minha mãe estava em pé, parada no meio da sala, esperando que eu deixasse de olha-la como se visse uma própria aparição mal assombrada.

- Co-como chegou aqui?

Perguntei levantando bruscamente, limpando a saia do vestido empoeirada.

- Queria conversar com você.

- Sinceramente acho que nossa cota de conversas de toda uma vida já se esgotou.

Ela era insistente no seu plano maquiavélico de atormentar minha vida. Não bastou bater a porta na cara dela da última vez em que decidiu me fazer uma visita na madrugada. Graças a aquilo tive que passar mais de vinte minutos enxugando o rosto para me recompor e voltar intacta para os braços de meu marido.

- Ainda não disse como sabe desse lugar - repeti calando-a.

- Precisa me perdoar.

- Sério? - questionei incrédula com a audácia do pedido - Porque eu devia? Porque você acha que é minha mãe?

Dei dois passos para trás evitando um possível contato. Mas não foi suficiente. Berta se atreveu a andar cada vez mais para perto de mim. E por mais que eu quisesse ficar longe, mas ela queria estar perto.

Aquela briga infinita acabou quando uma parede bateu sobre as minhas costas, limitando novos passos. Agora, cara a cara, a mulher ficou calada, de olhos mareados, me fitando piedosa. Realmente não esperei que ela fizesse aquilo...

Berta desceu devagar e ficou de joelhos, bem debaixo de mim, com a cabeça baixa.

- Por favor, me desculpe, me perdoe... - clamou aos prantos - Eu o amava Anahí. Amava aquela maldito homem que foi capaz de me cegar, me fazer uma péssima mulher, uma péssima mãe. Capaz de destruir minha vida. Fui refém dele por muitos anos e só que hoje eu me libertei... Estou liberta. Deixe-me recompensar você por todo esse tempo.

Permaneci muda enquanto ela falava todas aquelas atrocidades sem me deixar saída. A pesar de tudo e todos os pesares Berta era minha mãe e algo dentro de mim me fez chorar por vê-la daquela forma tão deprimente. Tão humilhante. Mesmo assim não consegui ter nem uma reação.

- Eu deixei você entrar numa vida ruim - continuou sob o meu silêncio - Porque na época pensei que seria a melhor, que era única maneira de te deixar livre daquele mostro. Fico tão feliz minha filha de ver que mesmo com tantas dificuldades hoje você esta bem. Feliz. Tendo tudo o que não pude te dar.

- Não precisei de você - rebati contendo a dor.

- Não! Não precisou! - concordou.

- Houve tantos dias... Tantas noites de ação de graças, festejos em família que eu apenas pensei numa mãe...

- Me desculpa por isso - ambas chorávamos descontroladamente- - Eu sinto tanto...

- Porque quer retroceder tudo?! - gritei - Não era pra ter voltado!

- Anahí, eu juro que se perdoar minha filha, vou pra longe da sua vida para sempre. Para onde quiser que eu vá, mas não posso mais viver sem o seu perdão.

- Isso não tem valor.

- Para mim sim! Foram muitos anos te olhando de longe, querendo chegar perto e ao mesmo tempo sentindo medo da sua rejeição.

Cansada de vê-la jogada sobre o chão, me inclinei para baixo e segurei seus ombros. A mulher me olhou nervosa, parecia desacreditada completamente. Assim que a pus de pé, esfreguei o rosto com o dorso da mão e soltei o fôlego.

Minha língua travou, minha garganta secou e tudo em mi ficou em êxtase. Paralisados pelo medo do desconhecido. O medo da fraqueza de um laço impossível de ser desfeito.

Por mais que meu ego abrupto renegasse aquele ser humano, no fundo, bem no fundo da minha alma havia uma garota necessitada de mãe. De um carinho único que todos precisam. Da presença calorosa, dos conselhos, da ajuda. Eu nunca tive nada parecido de ninguém, nem mesmo da vida que sempre me chutou contra os sentimentos. Mas se havia uma hora exata de contrapartida, dona Berta soube chegar. Eu estava gravida, sensível, e sabia mais do que nunca o que era um sentimento indescritível como o materno. Eu já amava aquela vida sem querer nada em troca dela. Apenas vê-la feliz me deixaria plena e eu lutaria pela sua felicidade.

Talvez nem todas as mulheres nascessem para serem mães, mas isso modificava os sentimentos delas por suas gerações?

"Anahí, eu juro que se perdoar minha filha, vou pra longe da sua vida para sempre. Para onde quiser que eu vá, mas não posso mais viver sem o seu perdão."

Foi o que ela disse.

Olhei para cima e apertei os olhos, voltando a encara-la.

- Eu... Perdoo você.

Boquiaberta, a mulher abriu os braços com entusiasmo, mas logo os encolheu temendo minha reclusa.

- Não precisa sumir para sempre de novo... -completei.

Estirei a mão e segurei a dela. Minha mãe chorou de novo, mas desta vez não houve nem um tipo de som. Foram apenas lágrimas deixadas de lado. Deixadas para que massageassem a sua face endurecida pelo temor.

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