Cadernos de Manuela

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Estância da Barra, 21 de setembro de 1835.

Nosso primeiro dia na estância passou sem acontecimentos especiais. Claro, não pude deixar de notar a angústia que se enreda nos olhos de Caetana feito um gato, arredia como um gato. Estranho, Caetana é minha tia, pois casou-se com meu tio Bento, e no entanto, mesmo a tendo conhecido assim, ao lado do tio, desde que nasci, não posso chamá-la de tia. Há uma dignidade estranha nela, em cada gesto seu, cada olhar. E mulher, apenas, e é tanto. Seus suspiros exalam suave fragrância, e imagino que Bento Gonçalves tenha por ela se apaixonado ao primeiro olhar, quando por acaso conheceu-a em alguma tertúlia uruguaia, na casa de seu pai ou de um outro estancieiro chegado seu. Meu tio Bento também é um homem marcante, de força. Quando pisa no chão, é como se a madeira tremesse um tanto a mais, mas não por seu peso, nem que pise forte, é que tem nos olhos, nas carnes, no corpo todo um poder e uma calma dos quais não se pode escapar. Meu tio, mesmo não estando entre nós, marca-nos a cada uma com a força de seus gestos: é por um ideal seu que estamos aqui, esperando, divididas entre o medo e a euforia. Caetana, por certo, com sua digna beleza e seu espírito ao mesmo tempo tão frágil e tão forte, deve ter-se rendido a essa aura que de Bento Gonçalves exala. Aura de imperador, mesmo que nesse momento esteja ele lutando contra um. 

Caetana, ao almoço, mal comeu. E pouco disse, apenas olhava tudo inquietamente, e tanto, que me pareceu estar vendo o nada, decerto retida entre suas lembranças. Tive vontades de sentar ao seu lado e de dizer-lhe que também eu sei do que ela sabe. Sim, pois ela sabe... Ficaremos aqui muito tempo. Mais tempo do que qualquer uma de nós possa imaginar. Ficaremos aqui esperando, esperando, esperando. Da estrela de fogo que vi na noite do novo ano, não falei a ninguém, mas tenho seu recado marcado a ferro em minha alma. Minhas irmãs, por certo, ririam de mim. Dizem-me densa. Densa como a cerração que cobre estes campos ao alvorecer, um manto opaco de água condensada, um manto, talvez, de lágrimas, lágrimas choradas pelas mulheres daqui por Caetana, quem sabe. 

Acordei hoje antes ainda da alvorada, e, como imaginei, lá estava a bruma cobrindo tudo, uma bruma úmida e gélida, e também um silêncio aterrador, um silêncio digno da pior espera. Demorou muito tempo para que um primeiro pássaro cantasse e, com seu canto, quebrasse a barra da noite, com seus presságios e sonhos angustiantes. Caetana chorou esta noite, tenho certeza. Eu não chorei: ficaremos muito tempo reunidas nesta casa, unidas nesta espera, e algo me diz que as minhas lágrimas terão serventia apenas mais tarde... 

Hoje é o dia marcado. 

Ainda não são sete horas, e pergunto-me se Porto Alegre já amanheceu dominada pelo exército de meu tio. Não tivemos ainda qualquer notícia, e tudo lá fora parece aguardar, até os pássaros piam menos, em seus galhos, ainda derreados pelo frio que esta noite nos trouxe; até a figueira, parece fitar-me com perguntas terríveis para as quais não tenho resposta. Sei que, ao café, uma nova inquietação virá juntar-se a nós, terá seu lugar à mesa e, talvez, a sua xícara. Mas ninguém terá coragem de formular a pergunta, a terrível pergunta, e os segundos passarão por nós com suas lâminas afiadas de tempo, sem que ninguém interrompa o bordado ou a leitura por mais de um momento que seja, um momento imperceptível. A arte de sofrer é inconsciente... E é preciso fingir que se vive, é preciso. Não pensar em meu pai, no seu cavalo dourado, do qual tanto gosto, não pensar em sua voz, e em seu grito. Terá ele ainda a sua espada presa à cinta? E meu irmão, Antônio, que vive a incomodar minhas leituras com sua alegria buliçosa de homem novo, e meu irmão, com que olhos receberá esta manhã, e onde? Terá vitórias e façanhas para contar aos filhos, ou cicatrizes? Ninguém sabe, e os pássaros teimam em fazer silêncio nos seus ninhos. 

Batem à porta. Mariana, em sua cama, está para despertar. Mariana sempre gostou que a deixassem dormir até mais tarde. É a negra Beata, com sua voz esquisita, metálica, que nos chama do corredor, dizendo que a mesa do café está pronta e que nos esperam. Vamos todas, com nossos vestidos rendados e nossas angústias. Mas é preciso. Pisar o chão com a leveza que de nós esperam, sorrir um sorriso primaveril e estar feliz, principalmente, estar feliz como a mais tola das criaturas... Mariana reclama um pouco, lava o rosto na água fria, escolhe um vestido qualquer, pela manhã não liga nem para as modas. 

Deixo aqui estas linhas, D. Ana gosta de todos reunidos à mesa e não hei de me fazer esperar. Um pássaro piou lá fora, um canto morno como um alento ou uma xícara de chá. 

Manuela.

***

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