Cadernos de Manuela

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Pelotas, 4 de junho de 1900.

Rosário partiu da estância naquela manhã de outono, e era como se, na verdade, já tivesse ido embora havia muito tempo, desde que mergulhara em seu túnel de silêncios, desde que achara para si aquele amor de outro mundo. Era minha irmã, e, no entanto, eu soube tão pouco dela, tão pouco... Tínhamos crescido juntas, brincado com as mesmas bonecas e, tantas vezes, sonhado sonhos idênticos de amor. Mas havíamos sido talhadas de diferentes matérias, e essa diversidade nos foi intransponível. Sob o teto da mesma casa, durante aquela guerra, nossas vidas se distanciaram até a encruzilhada final — ela partiu rumo ao silêncio que havia de recompor o frágil equilíbrio de sua alma, eu permaneci na estância, ao sabor daqueles dias de incerteza, vivendo do mesmo amor e sofrendo idênticas angústias até o fim da revolução. 

Nunca mais a vi. 

Ainda hoje a recordo com seu vestido de viagem, os cabelos soltos pelas costas, olhando-nos com seus olhos azuis, escurecidos pelo adeus. Ainda hoje recordo o suave movimento de suas saias, quando ela subiu na charrete que a levaria embora de casa, e a calma vazia com que se persignou àquele destino, calma somente digna de um espírito perdido num labirinto de medos. 

Rosário morreu no convento, no último ano da revolução. Não pude ir visitá-la, assim como não compareci ao seu enterro. A mãe esteve com ela umas poucas vezes, e sempre voltou com os olhos embaçados, silenciosa e triste. Sabia decerto que a filha tomara caminho sem volta, e que a cada dia estava mais inalcançável e etérea. (Para as mulheres do pampa, nada é mais incompreensível do que aquilo que não se pode tocar ou mensurar, e tudo o que é volátil assusta e desorienta. A doença de minha irmã, portanto, foi o último castigo que minha mãe logrou suportar. Aquele verme invisível, quase mágico, que lhe envenenava a filha mais velha, diligentemente, mais e mais, a cada dia.) 

D. Antônia disse que Rosário tinha enlouquecido de solidão, que algumas mulheres, mesmo as continentinas, não tinham brios para a espera, e que os anos as corroíam até que cedessem sua dor para a eternidade. Disse também que fora necessário que a levassem da casa, pois a loucura, como a gripe, era contagiosa. Talvez D. Antônia não esperasse a morte da sobrinha, talvez imaginasse que a distância e as novenas do convento haveriam de recuperá-la para o mundo, não sei... Não falamos mais sobre Rosário, e, depois da guerra, vi poucas vezes a tia. Ela se trancou na Estância do Brejo e lá ficou. Restaram dela aqueles olhares duros, que aprendi a imitar por força de sobreviver também eu aos meus fantasmas, restou dela aquela serenidade calculada quando todos estavam à beira do desespero, serenidade na qual me agarrei muitas vezes quando estive a ponto de me afogar na minha própria desilusão, como um náufrago em um mar revolto que tenha de seu somente uma tábua na qual apoiar sua fé. 

De Rosário, minha irmã mais velha, pouco restou. Lembro que sempre foi bela, de uma beleza cremosa e dourada, quase frágil, e que tinha anseios de viver na Corte. A pobre Rosário faleceu com a República que ela mesma tantas vezes reprovou. 

Mas essas recordações, ah, elas se adiantam a tantas coisas... Quando Rosário nos deixou, rumo ao convento, a guerra estava ainda pela metade, naquele abril de 1840. 

Meus cabelos começavam lentamente a crescer outra vez, como cresciam em meu peito a saudade de Giuseppe e a esperança de que ele me enviasse uma carta, um sinal qualquer, um aceno que trouxesse brilho aos meus dias. Anita, a mulher que ele escolhera para dividir a guerra e a vida no Continente, depois de ter sido capturada pelos imperiais, conseguiu fugir e encontrou-o outra vez. Quando Manuel, o caseiro, que tinha voltado de viagem recente a Viamão, acabou de narrar essa façanha, meu peito se encheu de sentimentos contraditórios. Eu tinha desejado que morresse, tinha ansiado ouvir da sua morte com detalhes escabrosos, para que pudesse dar meu amor e meu consolo a Giuseppe; e ele então voltaria para mim, arrependido de tal aventura, certificado de que estávamos mesmo unidos, pelo amor e pelo destino. Mas Anita ainda não tivera seu encontro com a morte — encontro esse que não tardou, para o peso de minha consciência — , estava de volta aos braços de Giuseppe, e grávida dele.

Essa notícia me feriu como uma lança, e corri para o meu quarto. Pouco me interessava tudo o mais naquela guerra desgraçada... Peguei meus cadernos de memórias e rasguei muitas páginas do meu diário. Não tinha então mais cabelos para cortar, mas apenas estes pulsos finos, de sangue e de seiva, que quase de nada valiam e que não ousei profanar... A semente de Giuseppe se perpetuava em outro ventre. E eu, o que tinha dele? Um punhado de escritos e meia dúzia de cadernos repletos de sonhos e divagações, em que seu nome se multiplicava pelas linhas e pelas páginas... Lembro que era uma tarde de outono, ensolarada, a despeito da minha dor, e lembro que caminhei até a cozinha, onde as negras trabalhavam sob a supervisão de Rosa. Em frente ao fogão, arranquei páginas e páginas de um caderno, e vi-as arder sob as chamas com os olhos secos de lágrimas. 

— Queime, desgraçado — foi o que eu disse. 

A quem se refere uma moça insana de paixão, quando assim fala? A Giuseppe, ou ao amor que me adoentava, me acorrentava a ele? Ao passado, com suas esperanças e erros e desilusões? 

Mariana acudiu, ao ouvir os gritos de espanto de Rosa. Mariana, que havia pouco tinha visto Rosário ser recolhida ao convento, então me tomava nos braços, com carinho, e pedia numa voz mansa que lhe devolvesse os cadernos, que os deixasse longe do fogo. 

— Um dia você vai querer lê-los, Manuela. Eles são a sua vida nesta estância. 

— Nunca mais. 

— Então deixe-os comigo, por favor. E levou os cadernos consigo. Depois, voltou à cozinha. Eu estava parada à beira do fogo, sem saber o que fazer. Fitei minha irmã: 

— Giuseppe vai ter um Filho. Ela sorriu tristemente. Tomou-me pela mão. 

— Vamos lá para dentro. Um dia, quando você quiser e essa mágoa tiver passado, le devolverei os cadernos. Deixe Giuseppe ter seu filho. 

A mágoa ressecou meu peito, mas, por fim, serenou sem alvoroços. Algum tempo depois, recomecei a escrever, porque não sabia mais levar os dias sem derramar meus pensamentos no papel, e as silenciosas tardes na estância pediam a companhia das palavras. Quando a guerra findou, Mariana me entregou uma caixa de madeira. Lá dentro estavam meus velhos cadernos. Foi lendo-os que cheguei até aqui. Passou-se muito tempo, depois daquilo tudo, e tanta gente morreu, quase todos morreram... Restei eu, como um fantasma, para narrar uma história de heróis, de morte e de amor, numa terra que sempre vivera de heróis, morte e amor. 

Numa terra de silêncios, onde o brilho das adagas cintilava nas noites de fogueiras. Onde as mulheres teciam seus panos como quem tecia a própria vida. 

Ah, mas isso tudo levou muito tempo, tempo demás... Naqueles dias, meus cabelos ainda estavam crescendo. Naquele tempo, ainda tínhamos muitos sonhos.

Manuela.

***

A Casa Das Sete MulheresOnde histórias criam vida. Descubra agora