Estância da Barra, 26 de agosto de 1836.
Nos últimos dias de julho, chegou carta de meu pai. Era a primeira vez que ele nos escrevia, antes mandara apenas abraços, carinhos, recados por um ou por outro que vinham dar aqui na estância como pássaros perdidos de algum bando.
Sua carta, mesmo antes de ser lida, foi um bálsamo para minha mãe e minhas irmãs. Até mesmo Rosário, que andava cada dia mais calada, retirada a um mundo do qual nos privava invariavelmente, sentou à beira do fogo para ouvir as palavras do pai, e vi que de seus olhos azuis escorreram lágrimas grossas. Sim, Rosário sempre soubera amar mais ao pai.
Não lhe deve ter sido fácil redigir sua pequena missiva, pois nunca fora homem dado a escritos e desabafos, no entanto a saudade de quase um ano deve ter-lhe pesado no peito. Além disso, tinha novidades sobre o cerco a Porto Alegre, e mandava avisar de um incidente muito grave. A carta narrava um grande ataque rebelde à cidade, sucedido no dia dezenove de julho corrente. Os rebeldes acossaram Porto Alegre com um canhoneio pesado que pusera a população em terrível pânico. Ouvimos essas palavras com o coração pesado e temeroso; a voz de minha mãe, ao ler esse trecho, tremeu de leve, alçou-se um tanto, até recuperar-se e voltar ao tom normal com o qual ela falava sobre tudo: a voz baixa, morna, quase adocicada. Era o grande assalto rebelde, para o qual haviam se preparado por mais de um mês. "Conquistamos com muito esforço e com o sangue de vários dos nossos o Forte de São João, posto que explodimos, por motivo de lá estar guardado o arsenal de armas do Império. Com a explosão, uma bola de fogo alaranjado subiu ao céu e quase fez-se dia, um dia terrível, por alguns segundos." E foi então que a carta de meu pai trouxe sua maior apreensão: "Infelizmente, minhas caras, tenho de lhes informar que, neste ataque, foi ferido o meu cunhado mui querido, nosso Paulo, que caiu em mãos imperiais, mas que, graças à bravura de seu filho mais velho, José, foi resgatado antes que lhe acometessem maiores danos. Paulo foi atendido por um dos nossos médicos, sendo que uma bala lhe perfurou o estômago, tendo saído pelo outro lado, e uma lança dilacerou-lhe a coxa direita. Sinto informar-vos de tão grave lástima, mas é meu dever, e assim tendo me pedido Bento, quero que vosmecês falem com D. Ana e digam-lhe que seu esposo está vivo, e que passa regularmente, e digam-lhe também que está sendo levado à estância, com a urgência que permite esta guerra e o seu estado de saúde, para que possa ser tratado pelas mãos hábeis da esposa."
Somente assim findou a carta de meu pai.
Quando Maria Manuela cessou a leitura, com os olhos rasos d'água, todas nós procuramos o rosto de D. Ana. Ela estava sentada a um canto da sala, ereta e lívida, as mãos cruzadas no colo, e lágrimas grossas escorriam-lhe pelo rosto, indo morrer na gola de rendas que lhe cingia o pescoço. Corri e ajoelhei-me aos seus pés, deitando a cabeça sobre seus joelhos, que estavam trêmulos.
Os dedos longos de D. Ana penetraram entre as tranças do meu cabelo e me acarinharam. De um canto, o pequeno Regente olhava tudo, com seus assustados olhos negros. A voz de D. Ana era um murmúrio, mas ela disse:
- Esteja calma, minha Manuela. Deus está conosco... - suspirou, parecendo buscar forças para terminar o seu dito. - Paulo chega aqui vivo. Eu o vi, dia desses, adentrando a porteira da estância.
Depois ergueu-se com jeito, me pondo de lado, e olhando todas nós no fundo dos olhos, com um aviso mudo para que permanecêssemos calmas, falou que ia até a cozinha dar ordens para o jantar e que voltaria em breve para tocar um tanto de piano. Ficamos todas mudas, de olhos baixos. Minha mãe chorou um tanto. Por fim, Caetana ergueu-se do lugar onde estivera e avisou: "Vou mandar Zé Pedra avisar Antônia do que aconteceu." E deixou a sala com seu passo de rainha.
Nos dias seguintes, foram nos chegando notícias esparsas. Um dissidente da tropa que passava por nossas terras contou ao capataz que os revolucionários tinham montado seu quartel general em Viamão, de onde agora controlavam discretamente Porto Alegre. O homem, faminto e estropiado, disse também que o moral das tropas andava baixo e que muitos partiam como ele, por causa da notícia de que Bento Manuel, com uma tropa de 3.000 homens, se preparava para marchar sobre as hordas de Bento Gonçalves. O homem também pediu de comer e de beber, mas Manuel, o capataz, deu-lhe apenas um quarto de pão d'água, dizendo que era um traidor e um covarde e que melhor teria feito se ficasse para lutar como um homem.
Manuel relatou tudo isso a D. Ana e D. Antônia, e as duas permaneceram soturnas e cabisbaixas, olhando para a chuva que caía lá fora em pingos regulares e dolentes. Estávamos todas tristonhas, e nas noites de nossa casa quase não se ouvia mais o piano, em parte porque D. Ana desistira de lutar de modo tão ferrenho contra a sua própria ansiedade e agora esperava claramente a chegada do esposo, em parte porque não éramos boa platéia. Mariana começou a queixar-se de tédio e de saudades de Antônio, que devia estar lá para Viamão, com o pai e os outros. Os meninos de Caetana corriam pela casa, cheios de energias acumuladas no mau tempo daquele inverno, quando não podiam ir ao campo nem brincar no quintal, e suas gritarias inocentes nos entravam pelos ouvidos como facas de gume afiado.
Certa madrugada, já em princípios de agosto, acordei com um alarido que sucedia no corredor. Mariana olhou-me assustada. Sempre temíamos que algum soldado imperial nos viesse molestar, mas as vozes eram da casa. Reconheci D. Ana e Milú, mais Zé Pedra, com seus monossílabos, e uns gemidos baixos e angustiados.
- Tio Paulo chegou!
Mariana pulou da cama, ia já para o corredor, mas eu a detive: era bom que esperássemos o pobre ser acomodado numa cama, e a tia estar mais calma. Nem sabíamos em que estado estava o tio, se muito mal ou já mais bonzinho, quase curado. Mas os gemidos que se alargavam nos diziam o contrário, e um cheiro de coisa estragada, podre, emanava, entrando pelas frinchas da porta. Mariana teve medo, abraçou-me. Regente pulou também para a cama, aproveitando nosso descuido. Assim passamos até que começasse a clarear, quando então saí do quarto e fui até a cozinha. As negras sempre sabiam de tudo na casa.
Na cozinha, a preparação do café misturava-se ao cheiro de folhas que ferviam numa tina e a um leve odor de coisa alcoólica. Preparavam uma infusão para aplicar no tio Paulo, e D. Rosa pessoalmente cuidava da fervura. Foi ela quem disse, na sua voz grave e contida:
- O patrão está malzito. A perna le vai inflamada e deixa sair um pus quase verde. - Falava aquilo sem afetação, sempre fora boa curandeira e conhecedora de ervas. - O ferimento na barriga até que está cicatrizando. Mas a perna... Não sei não, aquilo está ruim mesmo.
D. Ana cuidava do marido, no quarto, e lá passou a manhã inteira, enquanto as negras iam num vaivém de bacias e ungüentos, e a casa parecia exalar um cheiro de hospital, e todas nós ficávamos na sala, esperando alguma notícia. Apenas D. Antônia chegou muito cedo e logo foi para o quarto da irmã, com ares preocupados.
Quando pude ver o tio, fiquei espantada. Estava muito magro, o pijama que lhe tinham vestido sobrava no corpo todo, o rosto era branco, arroxeado em tornos dos olhos meio baços, a perna direita, inchada e exalando um cheiro de coisa ruim, estava coberta com uma bandagem branca que não escondia totalmente uma ferida vermelha e ardente que vertia um líquido purulento. D. Ana, de mangas arregaçadas e olhos secos, aplicava compressas na testa do marido, afanosamente, como se dos panos molhados lhe dependesse a vida. D. Antônia apenas olhava, tristemente, e em seus olhos muito negros e miúdos se via a terrível verdade de tudo aquilo.
Lá pelo meio da tarde, chegou um médico que estava pelas redondezas. Entrou alvoroçado para o quarto do doente, cumprimentando com muita afetação Caetana, com quem cruzara no corredor. Ficou lá por umas duas horas, saiu descomposto. Na sala, olhou-nos a todas e, pousando os olhos em D. Antônia, que estava a um canto, falou baixinho:
- Era bom que mandassem chamar os filhos, se fosse possível, e quem mais da família vosmecês desejarem aqui nesta hora. O senhor Paulo não passa desta semana... A perna gangrenou, espalhou-se por tudo, está podre por dentro. Nem a amputação resolve mais. Seria sofrimento vão - e baixando os olhos, acrescentou: - Me desculpem, senhoras, mas fui chamado muito tarde, agora não existe mais jeito.
D. Antônia ergueu-se com custo da sua cadeira, estava pálida e parecia quase frágil, no seu simples vestido cinzento. Enrolou-se mais no xale azul que usava e chamou o doutor: "Vamos hablar no escritório." O homem seguiu-a prontamente. Mariana desatou a chorar.
Manuela.
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A Casa Das Sete Mulheres
RomanceA Guerra dos Farrapos, ou Revolução Farroupilha (1835-1845) - a mais longa guerra civil do continente - , foi uma luta dos latifundiários rio-grandenses contra o Império brasileiro. As complexas razões do levante estão nos livros de História. O qu...