Capítulo 3

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D. Antônia recebeu o telegrama e o segurou entre as mãos como uma coisa preciosa. O paisano que trouxera a mensagem acompanhou um dos negros até a cozinha, onde lhe dariam de comer e de beber.

D. Antônia estava sentada na cadeira de balanço, tomando as frescas na varanda. A manhã do dia 22 de dezembro se acabava, um sol límpido e dourado derramava sua luz pelo campo, e lá fora soprava uma brisa fresca. Dos lados do rio, vinha, desfeita em frases desconexas, a cantoria das negras que lavavam a roupa. D. Antônia rasgou o envelope e leu. Bento Gonçalves da Silva tinha sido eleito presidente da República Rio-grandense, em Piratini.

Ela ergueu os olhos para o campo. Suas retinas tinham uma cor de carvalho, um castanho quase negro e cintilante onde nada, nenhuma emoção, podia escapar. Os cabelos presos no coque deixavam entrever as primeiras cãs. Não tinha esses fios brancos antes de a guerra começar; agora, quando se mirava no espelho, era fácil correr os dedos pelos fios desbotados. Podia enumerar as angústias que os tinham originado. Baixou os olhos para o telegrama e releu a curta mensagem. Bento Gonçalves era presidente de uma república que não proclamara. E estava preso. Estava longe, no Rio de Janeiro. Que sina era aquela que guiava um homem à frente de um rebanho inteiro, que o punha como um chefe, maior do que todos os outros e, no entanto, devedor desses outros, devedor de cada ovelha, a quem deveria zelar, honrar e proteger? Ficou pensando no irmão, trancado numa cela, logo ele que amava tanto o pampa, o vento batendo na cara, o cheiro de mato e de frescor das campanhas. Um presidente acorrentado. Bento Gonçalves não era republicano, ela sabia disso muito bem, tinham conversado tanto sobre esse assunto - como estaria se sentindo agora, com esse encargo, essa honra, essa lâmina cravada em sua carne? Com que armas lutaria, e contra quem?

- As coisas vão como cavalo desembestado.

A voz morreu lentamente. D. Antônia percebeu que falava sozinha. Ficou ranzinza. Nunca falava sozinha, era o primeiro passo para uma velhice caduca. Deitou um último olhar para o jardim florido e verde, aspirou o ar fresco, voltou para dentro da casa. Depois do almoço, aí sim, iria até a estância de Ana, dar a notícia a ela e às outras. Não ainda. Precisava pensar em tudo aquilo, pôr a cabeça no lugar.

Os acontecimentos se sucediam freneticamente. D. Antônia ouvira boatos de que Netto tinha se encontrado com Bento Manuel, e que ambos haviam tentado um acordo para aquela guerra, mas os entendimentos haviam fracassado. E o presidente Araújo Ribeiro estava enfraquecido perante o Império. As coisas se confundiam mais e mais. O hiato entre os revoltosos e os partidários da Regência aumentava a olhos vistos. D. Antônia pensou no Natal, dali a três dias. Esperava, como as outras, que Antônio, Pedro, José e Anselmo, marido de Maria Manuela, aparecessem para as festas. Pensou em Ana: haveria um lugar vazio à ceia, vagueza que nunca mais seria remediada. Sentiu uma pena terrível da irmã. Sabia muito bem que uma dor como essa demorava muitos anos para abrandar. E quando abrandava, ficavam as cicatrizes, vermelhas, doloridas, salientes.

*

No dia vinte e quatro de dezembro de 1836, Bento Filho e Caetano chegaram à Estância da Barra, depois de tomarem um navio no Rio de Janeiro, que os tinha levado até o Rio Grande. De lá, sob o sol quente de dezembro, cavalgaram para rever a mãe e os irmãos. Bento tinha terminado o ano da faculdade de Direito, e Caetano esquecia temporariamente os planos de entrar para uma universidade. Era tempo de pensar em outras coisas mais prementes. O Rio Grande ardia em revoltas, era preciso que todos os seus filhos viessem acudi-lo. Era preciso, por aquele nome que carregavam e honravam. Eram Gonçalves da Silva, filhos do general Bento, e a guerra os chamava. Joaquim, o filho mais velho, ficaria mais algum tempo na Corte, para visitar o pai na prisão e auxiliá-lo no que mais fosse possível. João Congo restara com ele no Rio de Janeiro.

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