Cadernos de Manuela

30 3 0
                                    

Estância da Barra, 15 de março de 1842.

O verão arrasta-se lentamente. Os dias são como fios que vão se enovelando num ritmo vagaroso e cansado, modorrento. Faz um calor seco e duro, que assola o gado e esfarela o chão. Aqui em casa, o verão mutou-se em época de silêncios e de tristezas, e muito já anseio pela chegada deste outono. Quero ver as folhas secas pelo chão. Quero o vento úmido e as nuvens pesadas, e a chuva que há de lavar tudo isso. Quero que tudo que é cinzento abandone minha alma e se instale no céu e desabe sobre o campo...

 E impossível não se contaminar dessa angústia que se alastra pelos cantos da casa. Mariana ainda está trancada no quarto, a pobre, mesmo que já estejamos entrados em março. A mãe ainda não esmoreceu em seus rancores. E quem diria que seu peito era um fosso tão profundo... Mas, a despeito dessa vileza, dessa falta de amor ou de coragem de amar o novo que minha mãe tem nos demonstrado, a barriga de Mariana começou a crescer. Já seus antigos vestidos não lhe servem, porque os últimos botões não encontram mais a sua casa. A criança em seu ventre, protegida desse calor e dessa apatia, vive e palpita e quer nascer. Caetana e Perpétua remendaram velhos vestidos, alargando-lhes a cintura, para que Mariana tenha o que vestir nesses tempos de gestação. Minha mãe surpreendeu-as várias vezes nesses afazeres, mas nunca nada disse e nem questionou. Apenas proíbe que a filha saia do quarto e não demonstra ânsias de vê-la. D. Ana mandou para lá uma tina de banhos, e toda tarde Zefina ajuda Mariana nas suas toaletes. Sou eu quem lhe leva os livros, os bordados ou o que mais ela deseje para ocupar suas horas de claustro. E D. Rosa encarregou-se das refeições, nas quais depõe um zelo de mãe, preparando quitutes e doces e pães que agradem ao paladar de Mariana.

 É um episódio triste, decerto. Talvez mais triste do que tantos outros que vivemos aqui nesta estância durante este anos. Tivemos mortes. Tivemos malogros de amor. Eu mesma perdi meu Giuseppe. O único homem dos meus anos, tenho certeza. Tivemos a loucura de Rosário, cuja vida ceifou-se no auge dos seus anos, e que agora se gasta naquele convento, nem mais longe dos seus desatinos, nem mais perto de Deus do que quando estava aqui entre nós. Mas, de tudo isso, o que mais me dói é esse amor de Mariana. Porque retribuído e intenso. Porque fazedor de uma nova vida. Estamos carentes de vida, e essa que nos chega encontrou poucos braços abertos, rostos tristes, silêncios pesados. Não há festa para recebê-la, e talvez o destino nos castigue por isso. Somos como coxos que renegam novas pernas, preferindo andar com velhas e gastas muletas. Porque foi assim que nos ensinaram desde que o mundo é mundo, e a maioria de nós valoriza mais a honra do que a vida.

 João Gutierrez foi para a guerra lutar com os republicanos. Talvez a sua lança possa mesmo encurtar o tempo dessas pelejas; porém, o mais certo é que será apenas um a mais a sofrer de sede, de calor ou frio, conforme os caprichos deste pampa. Terá de pelejar com a morte todos os dias, quase sempre em desvantagem. Mariana reza por ele, enquanto espera o filho. Mas vejo nos seus olhos a sombra da angústia. O fio de uma espada inimiga há de ser muito mais cruel do que a ira de nossa mãe, caso assim decida o destino. João Gutierrez pode não pisar nunca mais este chão, seu filho quem sabe será órfão, e nunca mais dele teremos qualquer notícia, nem virá um mensageiro nos avisar da sua morte para que Mariana tenha esse último consolo, esse momento cabal onde as lágrimas são o único modo de adeus.

 Pensamentos funestos... E um sol de ouro brilhando lá fora pela campina, iluminando o pampa. Estou contaminada de dores. E ainda sonho todas as noites com Giuseppe. Ainda rezo e almejo que volte ao pampa, se não hoje, algum dia. Que seja muito longe esse dia, mas que me encontre com vida, um sopro que seja, e eu juro: Seguirei com ele para a pior desdita, para o paraíso ou para o desconhecido. Terei essa força. Lutarei por meu amor.

 Às vezes, olhando Mariana com seu ventre enfunado e orgulhoso, lamento que Giuseppe não tenha feito um filho em minha carne. Dele, fui apenas noiva, uma noiva eterna. Nosso amor disso não evoluiu, e, no entanto, havia tanto mar para nós... Teria sido bom um filho dele, mesmo que também eu fosse obrigada ao castigo e à solidão de um quarto. Seria paga pouca para tê-lo eternamente marcado nos meus dias. Minha carne e a dele, unidas num outro corpo... Um sonho apenas.

 Digo isso para Mariana. Que ela se console. Nunca mais há de ser solita nesta vida, depois que seu filho nascer. E eu, o que tenho pela frente, além desta solidão de muitos anos? Talvez o conforto de uma casa bela, de peças vazias, o calor de um abraço ocasional, a chama de uma lembrança cheia de saudade e nada mais. Mas tudo isso é muito pouco para preencher uma vida. Tudo isso é como esse sol que brilha lá fora, na espera derradeira de mais um inverno. Tudo isso é tão passageiro que até dói.

Manuela.

***

A Casa Das Sete MulheresOnde histórias criam vida. Descubra agora