1843

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Cadernos de Manuela

Pelotas, 12 de janeiro de 1860.

 Aquela guerra teve muitos e longos verões. Alguns foram bons e românticos, como o que passei em companhia de meu Giuseppe, e outros, não tão felizes, mas igualmente doces, feitos de um tempo volátil, separado do mundo lá fora, um tempo só nosso, das mulheres que viviam naquela casa e nas adjacências, e que teciam seus trabalhos como quem tece a própria vida, sem tolas ansiedades nem vãs esperanças.

 Porém, o princípio do ano de 1843 foi assustador. No começo daquele mês de janeiro, Manuel, o capataz, irrompeu na sala num final de tarde, muito alarmado. Trazia a notícia de que o Barão de Caxias com seu exército e imensa cavalhada vinha rumo a Camaquã. Ninguém sabia dos seus planos, nem imaginávamos que tramava um meio de iludir os revoltosos, atravessando o rio e rumando pela margem direita da Lagoa dos Patos, onde não poderia mais ser alcançado pelas tropas farroupilhas. Tínhamos notícia de que o general Netto estava em seu encalço, mas não ali, pelas nossas bandas, onde o general sequer tinha passado ou mandado algum aviso de sua presença.

 A voz profunda e lenta de Manuel foi derramando aquelas palavras, e o medo cresceu entre nós como uma sombra. D. Ana quis saber se era possível ter uma idéia do tamanho da tropa imperial que se aproximava, ao que Manuel respondeu: 

— Parece que são quase dois mil homens. Uns vaqueanos viram a tropa atravessando a barra do São Gonçalo.

Minha mãe começou a chorar. Perpétua correu ao quarto para estar com as filhas, como se já houvesse algum perigo em deixar as duas crianças solitas, como se um soldado imperial estivesse desembainhando a espada bem no meio da nossa sala. E Leão, meu primo, que havia muito ansiava por entrar na guerra, deu um salto da sua cadeira, jurando que nos protegeria daquele perigo, que arregimentaria a peonada e que cuidariam da estância.

 Dois mil homens se aproximavam! Com raiva, com ira, com vontade de vencer e de esmagar a República e seus partidários. E estávamos nós ali, protegidas somente por um adolescente cheio de coragens, trinta peões e um altar tomado de velas. 

— O Barão não seria capaz de invadir a estância. Isso não seria cosa de cavalheiro — disse D. Ana, pensativa.

 Caetana olhou a cunhada com olhos espantados. E a voz rouca e quente perguntou: "Desde quando essa guerra é coisa de cavalheiros?" Fazia muito que essas elegâncias se tinham perdido entre degolas e matanças sem fim. Caetana era de opinião que corríamos perigo. Se o Barão invadisse a estância, pouco ou nada restaria. E a vingança seria grande. Éramos a família do presidente. Decerto, não nos haveria de matar, mas sofreríamos arreliações de toda espécie, sujeitas ao humor de dois mil homens dispostos a tudo.

 D. Ana decidiu que fecharíamos a casa pelos próximos dias. E os peões fizeram guarda, revezando-se por dias e noites. O mesmo fez D. Antônia, que abrigava Mariana e o pequeno Matias em sua estância. Passamos assim aqueles dias abafados... Falávamos baixo, comíamos pouco. Qualquer ruído nos alarmava até as dobras da alma, as negras andavam assustadiças, cheias de rezas. E dormíamos cedo, orando para que a noite escorresse rapidamente. O escuro sempre vinha habitado pelo medo.

 Quando o Barão fez a sua travessia, naqueles dias ensolarados de janeiro, ouvimos o rumor longínquo das tropas e da cavalhada, um rumor como que animal, como se um imenso bicho se avizinhasse, cercando sua presa com calma e prudência. Nesse longo dia, nada fizemos a não ser esperar. A noite veio e finalmente transformou-se em alvorada. Passamos a madrugada juntas, sentadas na sala, nós, as crianças, os meninos e as negras, esperando a sentença que o destino nos escrevia. Mas o Barão de Caxias atravessou o Rio Camaquã com seus homens sem nos incomodar. Tinha planos diversos. Ia para os campos de D. Rita ao encontro de outras tropas para seguir rumo à Campanha. Na manhã seguinte, D. Ana mandou reabrir a casa. Daquele perigo estávamos salvas. Mas que ninguém andasse sozinha pelo campo, nem fosse à sanga, sempre poderia haver algum soldado imperial perdido pelo caminho, e era bom que nos precavêssemos de tudo.

 Noites de vigília como a que narrei me marcaram a vida... A minha mocidade latejava de medo e ânsia. E eu imaginava um batalhão de soldados invadindo nossa casa, com seus apetites de tudo, suas adagas afiadas, sua vontade de vingar aquela rebelião que lhes custava tantos trabalhos. Nessas esperas, os minutos escoavam com lerdeza, eram densos, teimosos e imprecisos. Envelhecia-se assim. Quando a calma se restabelecia, todas nós estávamos mais gastas, mais sofridas, mais frágeis. Aprendia-se assim. Aprendia-se que as mulheres do pampa tinham essa sina, de sofrer e de temer, mas sempre com coragem, tomando chá à beira do fogo, enquanto soldados inimigos rondavam a casa. Nunca altear a voz, nunca pôr em palavras um medo ou uma angústia: era assim que se enlouquecia. Não queríamos terminar como Rosário.

**

 Quando o perigo cessou, fui conhecer o filho de Mariana. Um menino corado e moreno, com os olhos mesmos do pai, como minha irmã tanto almejava. Mariana estava bem, apaziguada, atendida em todos os desejos por D. Antônia, a quem nunca vira tão doce, despida de seu manto de seriedade, tocada por aquele amor maternal, pela doçura e fragilidade daquela criança que tinha decidido proteger. D. Antônia estava feliz. Tinha agora alguém para amar sem restrições, cuidava de Mariana, dizia que João iria voltar para conhecer o filho, era uma certeza que ela tinha. Anos depois, quando morreu, deixou a sua estância para Matias. O sobrinho-neto, renegado pela avó, fora o último grande amor da sua vida. Mariana, João Gutierrez e o menino foram viver na Estância do Brejo e lá tiveram existência calma e feliz.

Manuela.

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