Cadernos de Manuela

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 Pelotas, 14 de abril de 1900.

 Mil cavaleiros marchando oito dias sob a chuva. O frio desse continente lhes entra sob a pele como agulhas de gelo, o vento gruda no corpo os andrajos ensopados. A maioria tem os pés descalços, pisa na terra gélida que engole seus dedos como a boca ávida de um morto. O frio entrando pelas solas dos pés não é nada. Há uma força nesses homens. Há uma centelha de coragem que arde no peito de mui poucas criaturas sob esse céu. Que ânima os move? Por qual sonho morreram tantos, nessa manobra e em outras da guerra? Qual o assombro que mantém viva a chama em seus olhos cansados, molhados de chuva, em sua carne faminta e emagrecida e mutilada? 

Há alguma coisa nesses homens. 

 Algo de sobre-humano, de celeste, de bestial. Algo para além das fronteiras dessa carne. Vem do chão, viva energia que os alimenta a cada légua, que insufla em seus corpos a força para prosseguir contra todas as tempestades, a despeito do mais rigoroso dos invernos, esquecendo todas as derrotas. 

Os farroupilhas. 

Faz muitos anos que esse sonho pereceu... Dos grandes heróis que conduziram aquela guerra, restam hoje jazigos e ossos, e, para muitos, restam o nada e solamente ele. Os que feneceram em meio à batalha, os mortos de espada, de adaga e de frio. Os generais engolidos pela noite, pelos tiros no escuro. Alguns tiveram um chão de seu, e orações e homenagens póstumas que, decerto, haveriam de recusar. Mas todos partiram. Até meu Giuseppe, tão longe, cansou de esperar por mim e se foi. Somente resto eu desse tempo, com estas memórias, com esse horror e todos esses mortos e essa chuva que fustiga meu rosto como se também eu houvesse estado lá. 

Em São José do Norte. 

Mil cavaleiros marchando oito dias sob a chuva. O mês de julho despejando sua fúria invernal sobre o pampa. A água caindo do céu como uma chibata, derreando a aba dos chapéus, e muito mais do que isso, vergando ombros e almas e esperanças, penetrando fundo naqueles corpos que avançam em silêncio de oração. Não se pode gastar energia. Há muito chão pela frente. Barro, vento e frio. E há a fome que se enrodilha nas tripas como um gato velho e folgado. Mas não se pode reclamar da fome. Todos os que vão ali sabem das dificuldades que encontrarão pelo caminho. Precisam ser invulneráveis. Há a glória no final desse universo úmido e cruel e dilacerante. Há o mar. Em São José do Norte. E tudo o que eles precisam é do mar, de um porto. Por isso seguem em frente. Silenciosos como velhos fantasmas, sem recordar os homens que morreram na caminhada, de frio e de fome, ou que apenas desistiram para sempre dessa luta e desse pampa. Morreram brancos e gélidos e molhados. Não receberam cova. Esse chão de barro que cospe os corpos e os devolve à luz baça desse mundo aquoso não os acolheu. Apenas ficaram para trás. Estão na memória dos companheiros, mas não receberam adeus. Não se pode desperdiçar energia. 

Os dois canhões atolam constantemente. Os homens puxam, numa organização muda e exata, as únicas bocas de fogo que possuem para atacar a cidade. E seguem em frente. Por pouco tempo. Logo os canhões ficarão outra vez presos na lama. Outra vez a massa humana ao redor deles, numa luta sem trégua contra o mundo aquoso e mineral. A chuva esconde o além como um manto de sonho. Os cavalos puxam, os homens gritam, a energia se consome, bem precioso, e os canhões permanecem inertes no atoleiro. Aquele homem alto e forte e de grandes silêncios e de palavras medidas que foi meu tio Bento Gonçalves da Silva dá a única ordem possível: enterrar os canhões. Atacarão São José do Norte sem as duas bocas de fogo. Os homens obedecem. E eles seguem pelos charcos. O Continente de São Pedro do Rio Grande é agora um imenso charco por onde avança o exército. Avança em direção a um sonho, mil homens que não existem mais e que sequer voltarão a existir algum dia. Feitos de outra cepa. Madeira extinta. Mil homens do ontem. E da glória. E da coragem. 

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