Capítulo 2

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D. Antônia tomava a sopa que Maria Manuela ia lhe dando às colheradas. Não tinha fome, mas a irmã insistira. No entanto, sabia que a sua fraqueza precisava do calor daquele caldo; então fechara os olhos e recordara o tempo em que seu corpo tivera apetites, muitos anos antes, quando era uma moça, e a vida era apenas um caminho de sol a ser trilhado. Assim lograra a tarefa, deixando Maria Manuela mui satisfeita. Además, não era mentir que tivesse sentido um calorzito bom nas tripas, um aquentamento que lhe dera um certo prazer. 

— Vosmecê quer mais alguma coisa? 

— Não, Maria. Le agradeço. — A voz ainda titubeava um pouco. Maria Manuela sorriu. 

— Entonces vou deixar que usted durma um pouco. — E saiu do quarto. 

D. Antônia recostou-se no travesseiro. Podia ver um sol fraco lá fora, um sol que secava a terra depois do inverno chuvoso. Chegara a pensar que seria o seu último. A pneumonia avassalara seu corpo, apagara a clareza de sua mente ágil, e tudo o que ela podia recordar daqueles últimos meses eram imagens baças e perdidas de horas inquietas em que a febre a fazia falar sandices, nas quais via os rostos das parentas e os rostos dos seus mortos com igual nitidez. Num desses momentos, Bento Gonçalves lhe surgira à cabeceira, mas tão pálido e tão magriço de carnes, com o olhar tristonho e tão fugidio, que ela não soubera reconhecer nele um vivente, e chegara a pensá-lo defunto. 

Nesse dia, acordara aos gritos, e nem a insistência de Ana — que lhe garantia que Bento estava são, tinha perdido uma batalha, era verdade, mas estava mui bem de saúde e mandara carta a Caetana — chegara a acalmar seus pavores. 

Muitas coisas tinham sucedido desde o começo daquele inverno até ali, quando já a primavera floria os caminhos da estância, e era possível enfeitar a casa com vasos de jasmins. Quem lhe dava as notícias da guerra era Ana, que sentava horas à sua cabeceira e, enquanto bordava ou tricotava infatigavelmente, ia lhe contando as novidades das quais tinha ciência. Assim, D. Antônia ficara sabendo que o Império anistiara Bento Manuel, o tocaio de seu irmão, o traidor do Rio Grande, que agora estava em sua estância, no Alegrete, decerto mui contente da vida, tomando seu mate e calculando o lucro que obtivera com suas pilhagens, enquanto Bento Gonçalves ainda tentava erguer o fantasma da República Rio- grandense, a custo talvez das suas últimas forças. 

Fora a irmã também quem lhe contara do nascimento do filho de Giuseppe Garibaldi, em setembro, um menino de nome Menotti, que Anita dera à luz na vila de São José das Mostardas. Ana dissera que o menino tinha nascido com uma cicatriz na fronte, talvez fruto de uma queda que a mãe sofrera numa das muitas batalhas das quais participara.

D. Antônia pensou em Manuela, no peso que aquela notícia lhe traria. A sobrinha sofria em silêncio, fiel ao código das mulheres do pampa: ali não se choravam lágrimas vãs, não se lanhava o rosto; ali, vencia-se a vida dia após dia, com dignidade, fé e trabalho. Nunca mais Manuela tivera qualquer gesto tresloucado, como da vez em que cortara os cabelos à altura da nuca e ficara parecendo um menino um pouco crescido demais, nunca mais D. Antônia a vira pronunciar o nome do italiano, embora soubesse, com uma certeza tão inabalável que a febre não podia demover, o quanto a sobrinha ainda amava Garibaldi. 

— Manuela ficou sabendo disso? D. Ana aquiesceu. 

— Eu mesma le contei. Ela não derramou uma lágrima. 

D. Antônia recostou-se nos travesseiros e suspirou. Era bom que Manuela tivesse chorado em seu quarto por umas horas. A tristeza, quando bem administrada, era um bálsamo. Ela temia que Manuela endurecesse por dentro, cedo demais, como ela mesma. Força e dureza eram coisas mui diversas. 

— Manuela sofreu muito. É preciso que seja feliz mui logo, senão vai desacostumar-se com a alegria. 

D. Ana largou o bordado no colo. 

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