Cadernos de Manuela

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Pelotas, 20 de dezembro de 1880.

A carta de Joaquim caiu sobre minha alma com o peso de uma montanha. Ah, os pesares que meu pobre Giuseppe enfrentara! E tantos homens mortos, homens com os quais eu proseara muitas vezes aqui em casa; Luigi Carniglia, sempre tão gentil, a quem Giuseppe dedicava tanto afeto, a ponto de le chamar "irmão"; e Matru, o outro italiano, amigo de Giuseppe desde a infância em Nizza... E Ignácio Bilbao, por quem Mariana chorou tanto tempo. Sim, pois Mariana gostava do espanhol, e dele falava sempre com os olhos ardentes de afeto. Sabê-lo morto, sepultado sob as águas sem nem uma bênção, sem cruz ou flor sobre seus ossos, deixou-a em estado lastimável. Todos os seus sonhos se tinham afogado junto com Ignácio. E dele guardara, segundo me confidenciou naquele tempo, o gosto de um único beijo. 

Naqueles dias invernais e escuros, eu só fazia pensar nas angústias do meu Giuseppe, que agora devia se sentir mui solito nesta terra, pois seus maiores amigos e mais fiéis companheiros haviam todos perecido no naufrágio. E o Farroupilha, o barco que ele construíra com tanto empenho, do qual se orgulhava como um pai, era outro dos defuntos engolidos por aquele mar bravio. Dos sonhos de Giuseppe, havia restado muito pouco. E tanto esforço, e a proeza de cruzar este pampa com os barcos sobre carroções, tudo isso se tinha perdido... Deus não teria qualquer piedade daqueles homens que tanto faziam por um sonho? Não haveria qualquer clemência em seus atos, ou estavam sendo castigados por uma guerra que já ensangüentava todos os quadrantes deste Rio Grande? Impossível que eu tivesse essas respostas... E nem sobre isso eu podia conversar com minha mãe ou com as tias. O que se tinha sucedido de ruim morria para nossas bocas. Era a lei da casa, e somente no silêncio dos nossos quartos era possível que se pranteasse um amor morto, que se duvidasse de Deus ou que se tivesse medo do futuro.

Muitas vezes imaginei se Giuseppe pensava em mim naquela terra de Santa Catarina, se, nas noites tristes que se seguiram ao naufrágio, teria ele ansiado por meus abraços, por meu carinho e por meu consolo. Sonhava com ele todas as noites, seus olhos de âmbar, seu rosto bonito, seus cabelos de ouro puro... Vinha sua imagem sempre aquecer minhas noites gélidas, espantando o medo de sob os meus lençóis, fazendo sossegar o vento que assobiava lá fora como um morto insepulto. Eu vivia, então, para pensar nele, enchendo páginas e páginas do meu diário, cobrindo cadernos inteiros com frases de saudade e juras de um amor que nunca se veria realizado. Eu ainda não sabia... Mal abandonava o quarto na horas das refeições, ou quando D. Ana exigia de mim o cumprimento de alguma tarefa caseira. Ficava à beira da janela, olhando o campo nu e corroído pelo inverno, vendo a chuva cair de um céu pesado e cinzento, anúncio de maus presságios que sempre me traziam pânico. Ia, às vezes, brincar com a pequenina filha de Perpétua, mas a alegria sossegada da prima me causava remorsos, e temia maculá-la com minhas tristezas. Ficava pouco em sua companhia, e nenhuma das suas doces frases de incentivo chegou sequer a amainar a angústia que me corroía. 

*

No princípio de setembro, chegaram mais notícias sobre Laguna e sobre os republicanos. Tinham eles entrado na vila sob a escolta alegre do povo. Os sinos repicaram nas igrejas. Davi Canabarro, Teixeira Nunes e Giuseppe Garibaldi foram recebidos como heróis. Haviam feito mais de setenta prisioneiros, matado dezessete soldados imperiais e tomado quatro escunas da Marinha, quatorze veleiros, quinze canhões e mais de quatrocentas carabinas. Todo o esforço tinha valido a pena: Laguna agora era republicana, e iniciava-se então o governo sob o comando de Canabarro, condecorado general. 

Comemoramos a boa nova com uma ceia quase alegre — tínhamos discretas alegrias naquele tempo. D. Antônia, Caetana e D. Ana estavam jubilosas: Laguna seria fundamental para os planos republicanos, com seu porto de mar e sua localização estratégica. Falaram muito naquela noite, e vi o velho piano de minha tia ressuscitar suas valsas, que não se ouviam na casa desde o baile em homenagem a Bento Gonçalves. Mas minha mãe pouco ou nada disse, presa de seu eterno estado de tristeza. Para ela, a guerra tinha pouca importância, a não ser por ter Antônio entre suas fileiras; andava, então, sofrendo por Rosário, que se tornara cabisbaixa e cheia de segredos, e que, desde a noite em que fora encontrada vestida de noiva, mal se sentava à mesa conosco. Naquela noite, ceou em nossa companhia, e pude ver seu rosto abatido, as manchas arroxeadas que volitavam sob o azul dos seus olhos outrora tão vividos. Não falou da Corte nem dos antigos bailes que tanto adorava. Estava mais magra e muito alheia, sorvendo sua sopa com os olhos presos no prato, sorrindo às vezes para ninguém, ou fitando cadeiras vazias como se ali visse a sombra de uma pessoa só dela, que nossos olhos não podiam perceber. 

Mariana tinha melhorado então do seu luto, mas não via graças em comemorar uma vitória que lhe trouxera tamanho pesar; pouco comeu, e nada disse. Eu estava feliz por meu Giuseppe, recebido como herói, um salvador de povos (de quê tinham eles salvado aquela gente de Laguna, eu nem saberia dizer), um homem que merecia o afeto das multidões, o dobrar dos sinos nas igrejas, as palmas das damas nas varandas. Quisera eu estar ao seu lado naquele momento, e dividir com ele tamanha glória. 

Ah, eu não sabia então que meu Giuseppe estava a um passo de conhecê-la, a outra, a que o acompanhou e o seguiu e viveu com ele todos os sonhos que teci para nós. Aquela que se chamava Anita... Sim, dentre a multidão que o aplaudira em Laguna naquele dia de vitória, decerto estava ela, olhando-o de longe, já ansiando o momento de falar-lhe, de fazer-se sua como enfim se fez. 

Mas tinha eu dezenove anos, idade pouca o suficiente para crer que meu frágil amor era um robusto castelo, que Giuseppe se guardaria para mim, para mim que lhe era proibida, para mim que estava prometida ao filho do presidente da República pela qual ele lutava... Ah, como fui tola, hoje sei. Não tola por crer que Giuseppe tivera amor por mim — pois ele amou-me com toda a sua alma — , mas apenas tola por acreditar que esse amor teria um dia o seu sossego. Nosso noivado secreto, feito de juras e de beijos, o quão estava distante daquela realidade lagunense... Giuseppe não era mais o mesmo, então. E nem melhor, nem pior (tinha aquela fímbria que Deus deu a uns poucos, tinha honra), mas era apenas um homem longe de sua pátria, que vira morrer seus amigos, e que muito ainda teria que lutar. Um homem que vivia dia após dia, por pura necessidade de enfrentar a vida assim, e que por essa causa tinha um peito amplo e um coração valoroso, mui capaz de vivenciar o amor. E o amor lhe vinha. E o amor outra vez o perseguia naquelas terras lagunenses, e ele ainda nem desconfiava.

Manuela.

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