Capítulo 2

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 De longe, cruzando a coxilha sob o sol ardente de dezembro, João Gutierrez parece apenas mais um soldado que abandonou a peleja. Vem devagarito, dividido entre a saudade e o receio. Vem assobiando uma velha milonga que antes gostava de tocar na viola.

 Conhece o caminho, trilhou-o vezes sem conta durante os últimos tempos. Pesou palavras e gestos, preparou o sorriso perfeito, o tom de voz adequado. Mas nunca pôde domar aquele medo em seu coração. Vê a porteira, lá na frente. Acelera o trote. Sob a camisa, o peito ansiado também acelera o seu ritmo.

 O peão o conhece e permite a sua entrada. Foi avisado, faz tempo, pela patroa. Quando o homem indiático, o Gutierrez, volvesse, poderia deixá-lo entrar no Brejo. Agora ele era da família. O peão abriu a porteira com um gesto largo, acenou. Não notou a falta de nada no cavaleiro ereto e magro, de rosto liso e olhos muito negros.

 Matias brinca na varanda com seus soldadinhos de chumbo. O menino cresceu nos últimos tempos, logo completará dois anos. É longilíneo, os mesmos cabelos pretos do pai, a pele de Mariana. Há uma negrinha com ele. João Gutierrez apeia. A negra e o menino ficam observando a sua chegada. A negra o reconhece das longas descrições de Mariana. Matias pergunta: 

— Quem é, Tita?

 A negrinha não sabe o que dizer ao menino. 

— Uma visita — desconversa.

 João Gutierrez sente um frio na boca do estômago. O filho não o conhece. João tem o braço direito escondido atrás do corpo, como quem protege uma surpresa dos olhares curiosos. 

— Vosmecê me chame a senhorita Mariana. — A voz saiu firme, apesar de tudo. 

A negrinha ergue-se num pulo. 

— Sim senhor. A senhorita está lá para dentro. — Fita o menino. 

— Vosmecê vem comigo, Matias? 

— Não, Tita.

 Matias está sentado no chão da varanda. Os soldadinhos espalhados ao seu redor perderam a graça. Há um magnetismo naquele homem à sua frente. Ele sente vontade de rir, de contar do cavalo que vó Antônia mandou comprar só para ele, mas sabe que não deve falar com estranhos. A mãe sempre lhe disse isso.

*

 Os olhares se cruzam. Entre eles, está Matias. Mariana manda a ne- grinha levar o filho para dentro, e os dois somem no interior ensombreado da casa.

— Quero abraçar vosmecê, João.

 Ele sorri. O sorriso tantas vezes ensaiado sai diverso, mais amplo, emocionado. 

— Yo también, mi Mariana.

 Ela se joga nos braços dele. Sente seu cheiro, beija a pele daquele rosto que vasculhou em sua memória por madrugadas sem fim. João beija-a. O mesmo gosto orvalhado. Tê-la em seus braços é coisa delicada e tênue, é como alçar-se ao céu. 

— Esperei tanto. Vosmecê voltou de vez? Abandonou a peleja ou somente veio nos ver, de passagem? 

— Vim para ficar, mi Mariana.

 A voz dele tem vestígios de coisas guardadas, tem um sentimento sutil, uma fraqueza, uma entrega que ela nunca tinha percebido antes. Seus olhos oblíquos estão úmidos, os longos cílios negros, inquietos. 

— Sucedeu alguma coisa, João?

 Ela se afasta um pouco para contemplá-lo, como em busca de algum ferimento, alguma falha em sua figura bem-feita. João ergue devagarinho o braço direito. O punho da camisa, desabotoado, balança no ar. Mariana arregala os olhos. 

— Foi a gente do Moringue — explica tristemente, mostrando o braço aleijado. Depois mastiga o silêncio, o seu e o dela. — Usted ainda me quer, Mariana? Usted quer um hombre sem una mano, mas com la alma intacta?

 Mariana abraça-o. Não vai chorar. João não merece. E está vivo. Vivo e seu, para sempre. A guerra acabou para eles, e João voltou. De que vale uma mão, apenas cinco dedos, quando tanto mais estava em jogo? 

— Claro que le quero, meu amor. Vosmecê está vivo, graças a Deus. Graças a Deus. Rezei pela sua volta todos os dias, João. 

Ela pega o braço e beija a carne costurada, ainda avermelhada, a pele cheia de marcas onde antes estava a mão que dedilhava a viola nas noites mornas de verão. Claro que o queria, como antes. Ainda mais. 

— Pensei em não voltar, Mariana. Pensei em rumar para o Uruguai. Mas precisava saber se usted me queria, mesmo assim. Um aleijado.

 Mariana sorri. A dor nos seus olhos se desvanece. Agora desbrilham incólumes, como o céu azul da manhã de verão. 

— Vem, João. Vamos lá para dentro. Finalmente, vosmecê vai conhecer o seu filho. Ele sabe tudo sobre o pai. Nesse tempo todo, contei nossa história. — Beija o rosto moreno. — Matias vai ficar mui feliz. O pai voltou da guerra, finalmente.

***

A Casa Das Sete MulheresOnde histórias criam vida. Descubra agora