Cadernos de Manuela

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Estância da Barra, 5 de dezembro de 1835.

Eles partiram ao alvorecer. Mesmo tão cedo, o calor já se fazia sentir. João Congo aboletouse ao lado do cocheiro e abanou para nós com sua manzorra. Caetana olhou da janelinha, usava um vestido claro de viagem, mas, na mala, levava rico traje de festa. Vi meu tio Bento dizer-lhe: "Quero que estejas linda como nunca. Para que saibam quem somos." 

Perpétua pediu muitas vezes à mãe para que pudesse acompanhá-los ao baile, dançaria com o conde, queria muito ir à festa, valsar, dançar a chimarrita, ver gente e ouvir música. Bento Gonçalves irritou-se. Chamou-a de tola, disse que não estavam de divertimentos, que tinha uma província às suas costas. Ia a Pelotas para resolver um assunto pendente. Perpétua saiu correndo da sala, acho que chorava. Isso sucedeu ontem à noitinha, e a prima não esteve conosco ao jantar, nem foi à varanda despedir-se dos pais. 

Os grilos cantam lá fora. Já é bem tarde. 

Mariana ainda não veio para o quarto, deve estar conversando com Pedro e Antônio. É bom ter meu irmão conosco, mesmo que seja por pouco tempo. Antônio contou-nos coisas sobre o conde Zambeccari. Disse que ele fugiu da Itália, onde conspirava contra o rei. Que foi para a Espanha, para o Uruguai, e que agora estava aqui e era muito fiel a Bento Gonçalves. Rosário pareceu interessada no conde, fez perguntas, quis saber coisas pessoais. Antônio caçoou dela, disse que o conde Tito não era homem de romances. Gostava das idéias. 

Existem outros homens por trás disso tudo, homens daqui do Rio Grande, cujos sonhos se assemelham aos de Bento Gonçalves, e outros ainda, que sonham com uma república. O coronel Antônio Netto de Souza, de Bagé, Onofre Pires, primo de minha mãe, o major José Gomes de Vasconcelos Jardim, o major João Manoel de Lima e Silva, o capitão José Afonso Corte Real, o capitão Lucas de Oliveira, e ainda outros. Alguns deles querem apenas um regente que lhes dê ouvidos, outros falam fervorosamente numa república e no fim da escravidão. Antônio conta da tal república, e seus olhos brilham, brilho de olhos moços que almejam o futuro. D. Ana pede que ele não nos ensine bobagens. Fala que Bento Gonçalves quer apenas um novo presidente para a província, que reconheça os direitos dos estancieiros e as suas exigências. E isto é que é o certo. O resto são sonhos, diz ela. Fantasias. 

Antônio não retruca, baixa os olhos, respeitosamente. Quando ergue outra vez o rosto, ainda está lá aquele brilho. Eu o percebo como se fosse um halo, um halo dourado que circunda o verde de seus olhos. Talvez as outras não notem, talvez. Minha mãe, sentada numa poltrona, borda sua toalha de mesa quase com furor, não gosta desses assuntos de guerra e de política. Rosário torna a perguntar da vida pessoal do conde. Antônio responde, brincando: não é uma comadre alcoviteira, não fuça a vida do conde. Fica ele ali fazendo a sua graça, mas eu sei, eu pressinto, Antônio é republicano, gostou desse idílio, luta, no fundo de sua alma, é por isso. Me ponho a pensar se Bento Gonçalves percebe o imenso mecanismo que pôs em movimento quando marchou com suas tropas sobre Porto Alegre, e fico pensando como o coronel pretende dominar este tordilho enfurecido que já corcoveia pelos pampas, nos olhos de meu irmão mais velho, nos olhos de Pedro e de outros tantos espalhados por aí... 

Risadas chegam da sala. E eu estou aqui, quieta, escrevendo estas linhas. Para quem? Para que eu as leia, anos mais tarde, e lembre deste tempo aqui na Barra, destes dias silenciosos que gastamos esperando à beira do Camaquã? Não sei por que escrevo, mas algo me impele, uma vontade toma meus dedos, empurra a pena para a frente... Fico imaginando como estará o baile... Caetana levou na mala um vestido verde-esmeralda, de seda, decotado e com rendas na saia. Deve estar bela, mais do que é possível imaginar. Bento Gonçalves estará elegante, e sério, e duro, a barba feita com esmero, a camisa de seda branca, o chiripá preso à cintura. Muitas coisas se resolverão neste encontro, ou nenhuma. Amanhã à tardinha saberemos de algo. Amanhã eles retornam. Caetana volta para nós, tio Bento e o conde vêm buscar Antônio e Pedro, estarão de passagem, outros os esperam. 

Sim, sempre os homens se vão, para as suas guerras, para as suas lides, para conquistar novas terras, para abrir os túmulos e enterrar os mortos. As mulheres é que ficam, é que aguardam. Nove meses, uma vida inteira. Arrastando os dias feito móveis velhos, as mulheres aguardam... Como um muro, é assim que uma mulher do pampa espera pelo seu homem. Que nenhuma tempestade a derrube, que nenhum vento a vergue, o seu homem haverá de necessitar de uma sombra quando voltar para a casa, se voltar para casa... Minha avó Perpétua dizia isso, disse-nos isso muitas vezes ao contar das guerras que meu avô lutara. É a voz dela agora que ecoa nos meus ouvidos. 

E lá fora os grilos cantam. 

Deve ser bem tarde.

Manuela.

*** 

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