Pelotas, 9 de setembro de 1883.
A história de Giuseppe Garibaldi está impressa na minha pele, como as digitais dos meus dedos. Ultimamente, nas noites de frio, quando ando pela casa escura e já deserta de todos, ouvindo o eco das minhas botinas neste chão de madeira tantas vezes encerado, é nele que penso, é ele que ocupa toda a minha alma como se eu não fosse mais do que um refúgio para as lembranças do que ele já fez, e é no calor da sua recordação que me aqueço. É isso que sou: um cofre, uma urna daqueles sonhos perdidos, do sonho de uma república e do sonho de um amor que se gastou no tempo e nas estradas desta vida, mas que ainda arde em mim, sob essa minha pele agora tão baça, com a mesma pulsação inquieta daqueles anos.
Recuerdo mui bien os acontecimentos dos primeiros meses daquele ano de 1838, talvez o ano mais importante da minha vida - quando pus meus olhos sobre a figura de Garibaldi e, como um rio que sai do seu álveo, extravasei os meus limites e inundei recantos que nem ousara imaginar existentes...
Depois de convalescer em Gualeguay por muitos meses, já entediado daquela vida calma que nunca soube ser a sua, Giuseppe Garibaldi fugiu, em meados de janeiro. Mas sua fuga foi denunciada, e ele foi preso nas imediações da cidade. Estando o general Pascual Echague, seu protetor, em viagem de negócios, Giuseppe foi levado por um coronel de nome Leonardo Millan e foi torturado por várias horas, até que desmaiasse de exaustão e de dor. No final daquele mês, Millan seria seriamente advertido pelo governador da província, e Garibaldi então seguiria para Entre-Rios, onde responderia por seus atos à justiça local.
Mas Garibaldi fugiu novamente - não cruzara tantos mares para estar à mercê do governo uruguaio - , e dessa vez teve êxito. Encontrou seu amigo Rossetti, que voltava do Rio Grande, onde travara já vários encontros com os homens de confiança de meu tio. Garibaldi então partiu juntamente com Luigi Rosseti para engendrar aquela louca e linda república da qual tanto já tinha ouvido falar. Sim, aquele era um sonho pelo qual se merecia lutar até a última gota de sangue: a liberdade de uma terra e de um povo, a criação de uma nação igualitária, onde não houvesse imperador ou escravo. Enfim, no faro desse seu enlevo, vinha ele para a minha terra. E vinha a cavalo, pois agora tinha aprendido a montar e, sobre o dorso de um zaino de pêlo muito negro, cortava os pampas rumo ao Rio Grande.
No final daquele outono luminoso e de dias suaves, Giuseppe Garibaldi e seu amigo Rossetti chegaram a Piratini. A vila efervescia naqueles tempos: era a capital da República, e lá se acertavam todas as manobras dos exércitos. Estava cheia de vida e de emoções, e essa energia imediatamente atraiu o aventureiro italiano da minha alma: Garibaldi tomou-se de amor pelos anseios dos rio-grandenses, pela sua coragem e ousadia, e pela sua república.
Em Piratini, foram recebidos por Domingos José de Almeida, então ministro das Finanças.
- Bento Gonçalves tem grandes planos para vocês - foi o que lhes disse o homem baixinho, de fala vigorosa e espertos olhos castanhos.
Dois dias mais tarde, estavam nas margens do São Gonçalo, um braço de rio que liga a Lagoa dos Patos à Mirim, em meio a um buliçoso acampamento de soldados. Acomodados numa barraca, viram entrar a figura de Bento Gonçalves, alto, forte, enrijecido pelas lutas e pela liberdade, vestido no seu uniforme impecável. Giuseppe Garibaldi olhou fundo naqueles olhos escuros, e respirou aliviado. Estava em casa, finalmente. Agora tinha outra vez um sonho.
Meu tio traçara muitos planos para aquele italiano de olhos cor de mel e sorriso fácil. E foram esses planos que o trouxeram para os meus braços.
Durante o churrasco aqui na estância, Bento Gonçalves teve chance de se reunir com D. Antônia e de lhe pedir um grande obséquio: o uso do pequeno estaleiro que ficava na Estância do Brejo.
D. Antônia não recusou os desejos do irmão, por quem sempre seria capaz de fazer tudo. Bento Gonçalves partiu outra vez desta casa, e somente um mês mais tarde é que nos chegou um próprio que trazia na guaiaca uma carta do presidente. Procurava a senhora D. Antônia. A tia estava conosco, naquela tardinha de sol dourado e translúcido, cujo brilho dava contornos de ouro ao mundo - aqueles outonos de amarelo silêncio interminável hão de ficar para sempre na minha alma - , e recebeu a carta do irmão com suas mãos pálidas e firmes. Leu-a em voz alta para todas nós. Bento Gonçalves enviava, nos próximos dias, um grupo de soldados para a Estância do Brejo. Esses soldados eram, na verdade, marinheiros mui experientes cuja chefia cabia ao italiano Giuseppe Garibaldi, "um hombre mui honrado e digno, um verdadeiro soldado, que deve ser tratado com toda a fidalguia", segundo escreveu Bento Gonçalves. Vinham eles com a tarefa de construir barcos para o exército republicano, "e em tudo o que eles necessitarem, de comida, de agasalhos, de auxílio, conto com vosmecê para alcançar, e também com os peões da estância, para que les ensinem algumas lides da terra, visto que todos são homens de mar".
A tia fez uma pausa. Ficamos todas presas do mesmo silêncio. Foi Mariana quem resolveu perguntar:
- Quantos homens são?
D. Antônia deitou os olhos outra vez para a carta, procurando nas linhas escritas com letra firme o número exato do nosso susto.
- Parece que são quinze, minha filha. Na maioria, estrangeiros.
D. Ana largou o bordado, os óculos de aro de ouro brilhavam na ponta do seu nariz fino.
- Diacho, teremos assunto por estas bandas... - Fitou Mariana, sorrindo: - Vosmecê se acomode, menina. Esses homens são soldados, e vêm para cá por causa da guerra. Vosmecês todas, não me esqueçam disto. Ademais, são eles lá, nós cá.
Mas meu coração já alardeava aquele amor. Sim, e eu via como num sonho o homem loiro segurando o mastro de um navio, seu porte esguio, fidalgo, e seus olhos de poente. Seria então que ele me chegava?
D. Antônia cortou o fio dos meus devaneios.
- Antes desse italiano, vem para cá um tal de João Griggs, um americano. O Bento avisa isso aqui - apontou o papel timbrado. - Vai construir uns lanchões, para quando o tal italiano chegar.
Caetana foi para o lado da cunhada, querendo ver a carta do marido. Ficou ali um bom tempo, como que presa de alguma inquietação. Depois disse:
- Este tal Griggs deve chegar nessa semana ainda, Antônia. E preciso mandar arrumar o galpão, preparar umas camas. Dar um jeito na coisa.
D. Antônia guardou a carta no bolso da saia. A luz da tarde agora incandescia com seus últimos suspiros, e o brilho suave da primeira estrela surgia no céu.
- Vamos a isso, cunhada. E é preciso carnear um boi para logo. A fome de quinze homens não deve ser desprezada.
E foi assim que o suave arrastar dos dias iguais acabou para nós, para o regozijo de minhas irmãs e o meu. Fazia muito tempo que não tínhamos homens em casa. Fazia muito tempo que vozes masculinas não se faziam ouvir na nossa varanda. E agora eram vozes de outras terras, com sotaques misteriosos... E os donos dessas vozes, será que algum deles nos tocaria o coração, ou alegraria um pouco que fosse a modorra dos nossos dias? Éramos moças presas de uma espera, e agora nossa calma e nosso cansaço podiam ser sacudidos como lençóis num varal. (Naquela noite, lembro bem, de ansiedade, não dormi.)
Marco Antônio, que andava brincando por ali e que ouvira as novidades, saiu gritando para os fundos da casa:
- Zé Pedra! Zé Pedra! Tem uns soldados chegando para morar aqui! Urra! Zé Pedra, eu também vou ser soldado!
D. Ana sorriu, benevolente. Depois balançou pensativamente a cabeça de cabelos escuros.
- Acho que teremos dias agitados. E foi assim que tudo começou.
Manuela.
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A Casa Das Sete Mulheres
RomanceA Guerra dos Farrapos, ou Revolução Farroupilha (1835-1845) - a mais longa guerra civil do continente - , foi uma luta dos latifundiários rio-grandenses contra o Império brasileiro. As complexas razões do levante estão nos livros de História. O qu...