Capítulo 1

42 3 0
                                    

 João Gutierrez encosta-se à barranca, sentindo no estômago a angústia da primeira morte. Olha a adaga tinta de sangue. O imperial está caído no chão, degolado com perícia, os olhos de um castanho claro fitam o céu com um assombro estático e pasmado. Assombro de quem viu a cara da morte.

 A trombeta soa ao longe. O mundo é tomado pelo barulho do tropel. A um sinal, a cavalaria farroupilha avança em direção ao inimigo. O choque das duas tropas levanta uma nuvem de poeira, de gritos e de relinchos. João precisa de um cavalo, é exímio cavaleiro, mas está na infantaria. Há falta de animais. João salta para o outro lado da barranca.

 Ali a luta é travada com fúria. O corpo-a-corpo forma uma estranha coreografia pela campina onde o sol desmaia suas primeiras luzes.

 João Gutierrez corre, desfere golpes, grita. Tem os olhos cheios de poeira. É a sua primeira batalha. Tinham encontrado aquela divisão imperial perto do rincão de São Vicente. A batalha é dura. Os imperiais estão em vantagem numérica e têm uma boca-de-fogo. João tem a sua adaga, a boleadeira, e aquela raiva dentro da alma que precisa ser desafogada, que é como um rio em época de cheia. Matou hoje seu primeiro homem. Avançando no meio do campo de batalha, pisando corpos, pensa mais uma vez na garganta aberta, no sangue grosso, vermelho e vivido, que foi bebido pela terra. Sente um arrepio pelo corpo, um arrepio quente, igual ao de um copo de canha quando bate no estômago vazio. Sente um gosto amargo na boca, sente uma potência no corpo. Tirou uma vida, a vida daquele imperial que agora jaz caído no chão poeirento. Fez uma vida, ela agora pulsa no ventre de Mariana. Sente júbilo, a saliva tem gosto de vinho em sua boca espantada. Mudou destinos e ainda é o mesmo João de antes, porém mais vigoroso, um semideus. Há algum poder nessas mãos morenas, nessa alma de índio e de cantador.

 Um imperial avança a cavalo, adaga em riste. João Gutierrez faz um movimento de corpo, desvia da lâmina afiada. Num segundo, prende a adaga na boca e joga a boleadeira, girando-a no alto da cabeça. Desde pequeno sabe manejar a boleadeira. As bolas de ferro dançam no ar como pássaros furiosos, um instante, e voam em direção ao imperial. O homem cai do cavalo. João Gutierrez pega a adaga, crava-a no pescoço com um único e certeiro golpe. A lâmina adentra aquela carne. Há um estertor, o imperial arregala os olhos, abre a boca sem palavras. Agora o mundo todo é um único silêncio, nada mais importa senão aquela adaga e aquela morte.

 João Gutierrez pula para cima do cavalo. Agora não está mais a pé. Agora olha de cima a batalha e os rostos inimigos. Tem vontade de gritar o nome de Mariana. É por ela que está ali, é por ela que mata, que corre, que peleja. Vai degolar uma centena de imperiais. Não pela República, mas por Mariana. Vai ganhar uma medalha, por Mariana. E quando tudo isso acabar, há de limpar sua adaga de todo o sangue, lavar sua alma de todo o sangue, e voltar para a mulher que o espera.

 Violenta explosão arranca-o dos seus devaneios. O inimigo começou a canhoada. Uma bala cai por perto, destroçando homens, enchendo de pólvora o ar. Os soldados correm em pânico. João Gutierrez instiga o cavalo. Sai galopando pela campina. O sol agora ilumina tudo, descortinando sem piedade aquela paisagem de horror e de morte. Os olhos indiáticos de João Gutierrez estão mais negros do que nunca. 

— Tudo isso é por usted, Mariana — grita ele, para o vento que cheira a pólvora e sangue. — Tudo por usted!

*

 D. Antônia desceu da sege e subiu para a varanda. Desde a pneumonia estava mais seca de carnes, os olhos escuros e decididos salientavam-se no rosto fino. Sorriu levemente para Manuela, que estava lendo, sentada sob o alpendre. 

— Buenas, Manuela. Onde está a sua mãe? 

 O rosto era sério como de costume. D. Antônia não gastava sorrisos. Manuela baixou o livro, sorriu para a tia preferida. A mãe estava no quarto, a fazer nada, talvez rezando. 

A Casa Das Sete MulheresOnde histórias criam vida. Descubra agora