O frio da noite açoitou-a quando ela abriu o reposteiro e fitou a escuridão de agosto. A chuva caía pesada e ritmadamente do céu. O convento estava silencioso, mergulhado naquela hora morta, antes das matinas. Rosário procurou-o com seus olhos treinados. Da janela, mal podia divisar a pequena cerca que delimitava a horta. Forçou os olhos. Ao longe, a cruz de madeira do cemitério brilhava parcamente. Um brilho perolado. Steban estava lá, tinha certeza. A premência de vê-lo assolou-a com a fúria de sempre. Steban gostava das lápides simples das religiosas, com suas inscrições em latim, com as imagens dos seus santos, com sua pobreza austera. Rosário não se atentou à chuva nem ao frio da noite invernal. Steban era tudo o que importava. Como daquela vez, na estância, quando despertara no meio da madrugada, sabendo que ele a esperava perto do curral. Correra para estar com ele, e Regente, o cão de Manuela, a seguira com os olhos arregalados. Regente latira muito ao ver Steban, ganira para a noite. E Steban sentira tanta tristeza com a incompreensão do animal ante a sua frágil existência de criatura já finda, sem carne, sem corpo, que se pusera a chorar. Rosário lembrava-se bem da raiva que sentira. Gostava do cão. Brincara com ele muitas vezes; mas por Steban, para vingá-lo, é que tomara da pequena adaga que trazia num bolso da capa e degolara-o. Nunca havia feito semelhante coisa em sua vida, e surpreendentemente agira de modo exato, o corte perfeito, a mão firme. O cão morrera em silêncio. Depois de tudo acabado, o pobre Regente estirado no chão, sentira pena outra vez. Talvez tivesse sido desnecessário tal ato. Mas Steban sorrira. Steban lhe agradecera. Steban apreciava a arte da degola. E ela se apaziguara.
Deixou para trás as lembranças, vestiu a capa de lã, calçou as botinas. Precisava apressar-se. Abriu a porta do quarto, o corredor estava deserto. Saiu pisando leve, como se fosse ela mesma o fantasma lá de fora, tão semelhantes eram ambos. Trilhou os caminhos estreitos, passou pela capela, pelas salas de trabalho, entrou na cozinha ampla, silenciosa, ainda cheirando a sopa. Destravou a tranca de ferro e saiu para a noite. A chuva era fria e tinha gosto de coisas antigas. Seus pés chapinhavam na terra ensopada, enquanto ela seguia, contornando os canteiros da horta, até chegar ao pequeno cemitério. A cruz de madeira agora já não brilhava, era apenas madeira quase negra, rústica, cravada ao chão, elevando-se ao céu. Mas Steban estava ali. Sorrindo. Steban com seu uniforme bem composto, a bandagem em torno da testa, a ferida eterna que agora quase não sangrava mais.
— Steban...
Ele avançou um passo. Rosário viu seu rosto bonito, os olhos ardentes daquela febre, talvez de amor.
— Abrázame, Rosário.
Encostou-se nele. Sentiu aquele toque frio, mágico e gelatinoso, A chuva continuava a cair.
— Steban, quando ficaremos juntos de verdade? Quando nos casaremos? Não suporto mais essa espera. Ao chegar aqui, no convento, achei que teria alguma paz. Mas não... Só tenho paz ao seu lado.
Ele sorriu. Um riso opaco. Ele se afastou um pouco. Agora sua testa sangrava outra vez.
— Hay tiempo. La hora llegará, Rosário...
E foi se esfumando por entre os pingos de chuva, até que desapareceu completamente. Rosário ficou sozinha na noite, enquanto o frio penetrava pelas fibras da sua capa de lã e alcançava sua carne.
*
A primavera chegou em meados de setembro, com as primeiras flores. As noites ainda eram frias, mas durante o dia o sol começava a tornar agradável os passeios pela estância. Manuela e Mariana saíam a cavalo por horas, apreciavam aquele azul lavado do céu pampeano, aquelas campinas extensas, rasas e verdejantes, que acordavam do inverno com uma beleza renovada. A guerra prosseguia. Um piquete imperial estivera muito perto dali, mas respeitara as terras do general republicano, de modo que seguira para a Campanha sem causar transtornos à estância nem confiscar animais ou homens. Na Estância da Barra, os vaqueanos estavam armados e prontos para a peleja, caso algum imperial ou desertor aparecesse por ali disposto a causar confusão. Por isso, as mulheres se sentiam seguras. Por isso, Mariana e Manuela jamais abandonavam os limites da propriedade desacompanhadas. Tinham ouvido muitas histórias de mulheres desonradas por soldados, grupos deles, que acabavam loucas ou iam viver em algum convento, imprestáveis para a vida.
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A Casa Das Sete Mulheres
RomanceA Guerra dos Farrapos, ou Revolução Farroupilha (1835-1845) - a mais longa guerra civil do continente - , foi uma luta dos latifundiários rio-grandenses contra o Império brasileiro. As complexas razões do levante estão nos livros de História. O qu...