Cadernos de Manuela

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Estância da Barra, 7 de novembro de 1836.

Naquela mesma noite, após receber um bilhete de minha mãe, D. Antônia veio ver-nos. Mesmo sob sua máscara de força e serenidade, via-se uma profunda tristeza entranhada nos seus olhos negros. Primeiro, sucedia a morte do tio Paulo, e agora a prisão de Bento Gonçalves... As coisas ficavam duras para nós, e D. Antônia padece calada, como minha avó, de quem nunca ouvi uma reclamação durante toda a minha vida. Aqui no Rio Grande, sofrer é uma sina, e nunca se sofre mais do que numa guerra. D. Antônia sabe disso, vai se tornando marmórea com o passar dos dias. Endurece. A tristeza não se mostra, é uma espécie de nudez.

D. Antônia não chorou um só momento naquela noite que custou muito a passar, mas esteve acalmando Caetana, pedindo-lhe que ficasse bem, pelos filhos, por Bento. Sim, pois Bento voltaria. Ela tinha absoluta certeza.

- Bento tem o pêlo duro, Caetana - garantia D. Antônia, com sua voz baixa, tépida. - Quando era guri, caiu de um cavalo e luxou o tornozelo. A mãe ficou muito preocupada, pois fora um tombo feio. Depois que o enfaixaram, Bento sumiu... Quando fomos procurá-lo, estava lá, montado no tal zaino, feliz da vida, como se nada tivesse sucedido. Sempre foi uma criatura teimosa... - E D. Antônia sorria, tentando convencer a si própria: - Ele vai fugir de lá. Ninguém segura Bento Gonçalves da Silva.

Todas nós acreditamos naquelas palavras como numa profecia.

Quando recuperou um tanto da calma, uns dias depois, Caetana escreveu longa carta aos filhos. Fiquei pensando em Joaquim, lá no Rio de Janeiro, como iria ele receber tal notícia? Será que poderia visitar o pai? Joaquim, de olhos negros e sorriso alegre, com quem brinquei em tantas tardes da infância, e que hoje está prometido para ser meu esposo. Tenho carinho por ele. Carinho. D. Ana disse que sentir carinho é um modo de amar... Mas ainda não me esqueci daquela visão, do homem no convés do barco, do homem loiro que sorria para mim. E dizem que me casarei com meu primo, quando esta guerra acabar... Se um dia esta guerra acabar. Não foi o rosto de Joaquim que emergiu em mim, naquela noite de Ano-Novo. Foi, isso sim, um rosto estrangeiro, um rosto diverso desses nossos rostos rio-grandenses, de pele morena, de cabelos escuros, com ares espanholados. Aquele homem era puro ouro, um sol poente brilhava dentro dos seus olhos, dourava seus cabelos de trigo. Às vezes me ponho a espiar o horizonte para muito além das coxilhas, e fico pensando: virá algum dia esse homem dos meus sonhos, verei a face que ora me visita em pensamentos, ou meu destino é mesmo casar com meu primo Joaquim, ter filhos seus, distribuir ordens às negras, cujas mães também obedeceram às mulheres mais velhas desta casa, dar netos ao coronel Bento Gonçalves, netos parecidos com o que já somos nós, com este mesmo sangue correndo nas veias e estas mesmas visões de campos e de alvoreceres na alma? Não tenho resposta que sossegue o meu espírito. Os dias passam, iguais entre si. Instala-se o verão no pampa, e nós ficamos esperando que nos tragam a boa nova tão ansiada, a notícia da fuga de Bento Gonçalves.

João Congo, o negro de meu tio, apareceu na estância em meados de outubro. Caetana deulhe dinheiro e instruções para que tomasse um barco para a Corte e fosse estar com Joaquim, Bento Filho e Caetano. De lá, poderia zelar por Bento Gonçalves, levar-lhe de comer todos os dias. A comida da prisão deve ser das piores. João Congo partiu no dia seguinte, com um punhado de cartas e um sorriso no rosto preto e afável.

Todos se vão, somente nós restamos aqui. Novembro chegou com um céu azul sem nuvens e um sol morno que faz brotar flores por todo o campo. Impossível, vendo esta beleza serena, imaginar que fora desta terra se trave uma guerra tão cruel. Mas as notícias nos chegam com o vento, e é verdade que a guerra existe lá fora.

Os filhos de Caetana crescem, Ana Joaquina já começou a falar, corre atrás de Regente pelos corredores, está ficando uma guriazinha bonita. Leão, desde que soube que o pai foi preso, faz apenas brincar de guerra com sua espada de pau, Diz que vai libertar Bento Gonçalves. Caetana e D. Ana olham tudo com ares apreensivos. É sempre mais um homem se fazendo para a guerra, mais um a esperar, por quem rezar, a quem prantear.

E o tempo assim vai passando. Completei meu décimo sexto ano num domingo de sol. D. Ana mandou que se fizessem bolos e doces, e minha mãe me deu de presente uma gargantilha de ouro que fora sua na mocidade. Pensei muito em meu pai e em Antônio, nos aniversários passados, quando o pai me pegava no colo, dizendo que eu era a sua menina e que nunca haveria de crescer. O pai está longe, faz um ano que não o vejo. Serei eu a tomar um susto quando o encontrar - quem sabe o que a guerra causou à sua pessoa - ou será ele que se espantará por me ver moça, por ver em mim essa serenidade lavrada a faca, moldada nesses dias de angústia e de espera, em que o silêncio ainda é o melhor dos confortos e dos esconderijos?

Mariana mudou também. Encantou-se com o tenente André, andava de assuntos com ele, mais feliz, até sorridente, alegria que contrastava com a tristeza de todos. Desde que o vira na varanda, ainda sujo e cansado da viagem, uma nova luz se acendera nos olhos de minha irmã Mariana. Durante dias, seguiu-o com os olhos, de longe, sem coragem de falar-lhe. Até que um dia vi os dois proseando no pomar. Mariana exalava um viço novo, um viço que destoava de todas nós.

A casa, desde a notícia da prisão de Bento Gonçalves, ficou mais silenciosa - D. Ana desistiu temporariamente do seu piano. Para sofrimento de minha irmã, o tenente, passada uma semana aqui na estância, tomou estrada outra vez, foi juntar-se às tropas de Netto. Mariana ficou desolada, fugiu para a sanga, restou lá uma tarde inteira a chorar. Voltou para a casa com os olhos ardidos, um cãozinho sem dono. Não se pode segurar um soldado longe da guerra, não aqui no Rio Grande... O tal tenente, mal esteve recuperado da perna, montou num cavalo e foi procurar seu novo coronel. Com Bento Gonçalves preso, Antônio Netto é agora o cabeça da revolução. Dizem que está ganhando batalhas na Campanha. Que Deus o ajude. Desde então, minha irmã ora por suas tropas. O pequeno altar de Nossa Senhora, no corredor, nunca esteve tão repleto de velas. O cheiro de cera se espalha por tudo, junto com o perfume da pessegada que está fervendo nos tachos, é mais um dos odores desta casa de mulheres.

Manuela.

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A Casa Das Sete MulheresOnde histórias criam vida. Descubra agora