Cadernos de Manuela

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 Pelotas, 25 de junho de 1890.

 A renúncia de meu tio marcou o começo do fim de muitas coisas. Como a ponta de um longo fio num labirinto, aquele gesto nos guiava a todos pelo penoso trajeto que haveríamos de percorrer dali para adiante. De algum modo, para nós era o estertor da revolução, da revolução como a havíamos sonhado — ou como nos tinham ensinado a sonhar — , nunca mais a glória, nunca mais a euforia da renovação que, se sequer podíamos compreender, ainda assim nos alegrava. Nós, que éramos servidas por escravas em todos os momentos, que, para vestir um espartilho ou prender os cabelos, necessitávamos daquelas mãos negras a nos auxiliar, tanto vibramos com a ambição republicana sobre a abolição da escravatura. E, no fim, até mesmo esse disparatado sonho se liquefazia; não haveria liberdade para os negros, não haveria independência, nem um futuro de grandes cidades de homens libertos da tirania de um imperador onipotente. Os caudilhos gaúchos viam seu orgulho ferido de morte. Agora, era questão de tempo para que tudo se acabasse, não como um sonho cheio de júbilo, mas como um longo pesadelo que nos alucina uma noite inteira e, ao raiar do dia, deixa apenas um rastro de suor e de medo em nosso corpo exaurido.

 Tudo tão engraçado... Havia-se lutado por conquistas que muitos não almejavam, e mesmo assim — talvez ainda mais por isso — aquela derrota doía tanto. O meu tio, Bento Gonçalves da Silva, por exemplo, nunca viveu sem escravos e sempre quis bem ao imperador. Gastou os últimos anos da sua vida naquela briga por uma república que não planejou, e para a qual foi eleito "chefe". De uma certa forma, no momento da renúncia, Bento Gonçalves da Silva voltava ao princípio de tudo; porém, agora um pária, um homem a prêmio, uma criatura revoltada, descontente, cansada e enferma. Um perdedor. Sim, sabíamos que a longa guerra lhe tinha desbaratado a saúde, sabíamos das suas febres, do mal pulmonar que o acometia, das longas noites insones. Mas imaginávamos que tudo seria passageiro: com o fim da peleja, que decerto estava próximo, meu tio recuperaria a saúde. Era consenso na família que Bento Gonçalves tinha algo de imortal, portanto não o imaginávamos à mercê de qualquer doença, fosse ela grave ou passageira. Meu tio sobreviveria a tudo, até mesmo àquela derrota. Vã ilusão. Algum tempo depois daquele verão de 1843, descobriríamos que estávamos enganadas também quanto a isso. Bento Gonçalves da Silva não era perene, não era um deus e nem possuía qualquer arremedo de divindade — era, como nós, mortal, sofredor, um iludido com a vida.

 Bento Gonçalves morreu exatamente como qualquer outra criatura sob o céu. Num dia qualquer, deixou de aspirar o oxigênio, e o seu coração parou de bater. Tenho para mim que a pleurisia foi apenas uma desculpa que arranjou para explicar o seu fim. Morreu foi de desgosto por tudo aquilo, pelas coisas que vira e patrocinara, e pelas coisas que não lograra conseguir. Sua morte teve um matiz de fracasso, e ele deve ter levado essa dor eterna para o túmulo. Foi um gigante. E sua queda final teve a proporção da grande altura que ostentou em vida.

 Mas a iminência do término da revolução não era um mau pressagio para todas nós. Mesmo que esse fim viesse enlameado pela derrota. D. Ana já não mais suportava a guerra. Não queria mais estar apartada de José, seu filho, o único que lhe restara da família de outrora. Queria-o em casa, ao seu lado, tomando outra vez o prumo dos negócios, da boiada, das coisas da estância, que iam de mal a pior após tantos anos conturbados, quando imperiais e republicanos confiscavam cavalos e bois, e as vendas de charque estavam difíceis e mal paradas. D. Ana chorou pelo irmão, pela derrota pessoal daquele homem que sempre soubera admirar e louvar; mas logo depois seus olhos adquiriram novo brilho: se a guerra estava rumo ao seu fim, talvez José voltasse inteiro, são, e não aleijado, doente ou morto, como o marido e o filho caçula.

 Também Mariana ansiava o fim da peleja. Nesse dia, João Gutierrez tomaria o rumo da volta. Agora já bem instalada com D. Antônia, Mariana nem mais pensava na mãe, na nossa casa de Pelotas, na vida de bailes que levara anteriormente. Com o fim da guerra, não retornaria à cidade, mas ficaria na Estância do Brejo, com o marido, o filho e a tia. D. Antônia tinha lhe dito: quando voltasse, João poderia administrar a propriedade, pois ela já andava velha e cansada para os assuntos do charque e da cavalhada. Precisava de um homem para manejar os negócios. E queria a sobrinha e Matias vivendo com ela. A longa guerra deixara-a sentimental. Não sobreviveria mais à solidão das salas vazias, das noites de minuano. Matias trouxera-lhe um novo gosto pelas coisas da vida.

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 Quanto a mim, naquele tempo, já não almejava mais nada. O futuro era um espelho embaçado no qual eu não mais desejava me mirar. Estar na estância ou em Pelotas, tudo me reservava a mesma solidão. Eu sofria pelo fim tão negro que se nos apresentava: dez anos de pelejas e de sangue gastos em vão; mas a verdade é que eu tinha deixado de me interessar pela revolução no dia mesmo em que Giuseppe Garibaldi transpôs a fronteira para o Uruguai.

 Depois que seu filho nasceu, Mariana me enviou os cadernos que um dia tinha protegido da minha fúria. Não todos ao mesmo tempo, mas um a um, escolhendo-os conforme a data em que haviam sido escritos. O último chegou poucos dias antes da assinatura do tratado de paz que deu fim à revolução. Eu os lia como se não tivessem saído das minhas mãos, linhas traçadas por outra mulher, uma que acreditava no amor, no futuro. Não eu, moça sem horizontes, inundada de saudades que nunca haveriam de se aplacar.

 Apesar de tudo, a revolução fora um tempo feliz na minha vida. O que veio depois, pouca ou nenhuma importância teve. Longos anos estéreis, gastos na contemplação das alegrias alheias, enquanto a beleza que um dia tive esvaía-se, mutando-se em gastura, em flacidez e em rugas. Envelheci esperando Giuseppe. E ele nunca veio. No entanto, jamais perdi minhas esperanças. Jamais vacilei no meu amor, na minha adoração. Nítidas, todas as lembranças dele em minha alma, o tom exato dos seus olhos de mel, o ouro dos seus cabelos, a veludeza alegre da sua voz, o calor dos seus abraços, a pimenta dos seus beijos. Hoje, sou velha, velha o bastante para contar da Revolução Farroupilha para quem não a viveu e pouco sabe daquele tempo. Hoje sou feita de lembranças. As pessoas me apontam na rua, sou como uma lenda, uma coisa entre o grotesco e o misterioso: a "noiva" de Garibaldi. O quase. Sou aquela que não se concretizou.

 Ainda não morri. A vida me reservou um grande quinhão dos seus favores. Tempo que gastei esperando por Garibaldi. Vivi o suficiente para saber de seu falecimento, oito anos atrás. E, o mais impressionante, essa notícia não doeu em mim. Fui-me despedindo dele dia a dia, durante quarenta e três anos — da última vez em que o vi até o dia da sua morte. Agora que abandonou seu corpo, somente agora sei onde se encontra, que mares navega. Logo, irei ter com ele. Agora apenas espero...

 Hoje, penso muito em Bento Gonçalves. E experimento, de leve, o gosto amargo que deve ter sentido meu tio, o gosto da desilusão de quem não conseguiu realizar sua tarefa, sua sina. O gosto de quem busca a morte como última oportunidade para ser feliz.

Manuela.


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