1838

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INTRODUÇÃO

A barraca sacudia com o vento de temporal, mas lá dentro, protegido pela lona, o mesmo ar pesado, úmido, continuava incomodando Bento Gonçalves. Incomodava por recordar a cela quente no Rio de Janeiro, onde ele cozinhara no próprio suor por dias e dias a fio sem um banho que fosse. No mais, estava em casa. Se saísse para o campo, veria as árvores do capão assoladas pelo temporal, vergadas por aquele vento fresco, incansável, que vinha de longe, que vinha da Argentina. Gostava de tempestades, de ver o pampa alisado pelo pente dos temporais, os raios explodindo ao longe, rachando o céu com sua luz prateada. As últimas luzes da tarde eram engolidas pelas nuvens negras. O coronel Onofre Pires, grande, alto, desproporcionalmente superior ao teto baixo da barraca, estava sentado num banco, sério. 

— Então nomearam o Elzeário de Miranda para presidente da província? 

Onofre derramou um olhar pesado sobre Bento. 

— O homem vem com tudo. 

— Entonces, também vamos com tudo para cima dele, Onofre. Eu tenho meses de tédio acumulados nas costas. 

Onofre sorriu vagamente. Bento Gonçalves levantou do seu banco, pediu licença e saiu para o campo. Lá fora, soldados recolhiam os cavalos e protegiam os mantimentos da fúria do temporal, e tudo isso dava uma agitação quase caseira ao acampamento. Bento Gonçalves lembrou das negras, na estância, recolhendo, às pressas, a roupa seca no varal. Sentiu um cheiro de pão quente e uma vontade louca de ir para casa nem que fosse por uma noite, para rever as meninas, os dois guris, e dormir na cama de Caetana. Precisava escrever a Caetana para contar do filho. Bento fora promovido a tenente — era um bom guerreiro. Parecido com ele, herdara até seu nome. Tinha valor nas batalhas, agora estava com Netto, no cerco à capital. Pelo tempo que durasse o cerco — talvez não muito. 

Andou uns passos, sentindo o vento úmido lamber seu rosto, penetrar por entre a barba como um afago. A chuva começava a engrossar, mas era boa, fresca. Do chão se levantava aquele cheiro bom de terra molhada. Um raio estourou no céu, bem perto. Bento Gonçalves olhou para os lados, saboreando aquele pampa que por tanto tempo revira em seus pensamentos, até que perdesse os seus contornos reais, até que virasse nada mais do que um sonho, um lugar mítico, pelo qual ansiava nas longas noites pegajosas da prisão. 

Ao longe, sob uma árvore, Joaquim olhava o temporal. Bento Gonçalves correu até o filho. 

— Vosmecê estudou tanto, Joaquim. Esqueceu, por acaso, que uma árvore não é um bom lugar para se apreciar uma tempestade? — Falava sorrindo, a chuva escorrendo pelo rosto, molhando o cabelo negro. — Vem, Quincas, vamos para um lugar melhor, não necessariamente um teto... Também tenho gosto numa boa chuva. 

Saíram ambos caminhando pelo acampamento. O chão já se enchia de poças. O vulto alto e teso de Joaquim seguia ao seu lado, no mesmo passo. 

— Pai, o senhor vai para Porto Alegre estar com as tropas do Netto? 

— Não. Hay muito o que se fazer por estes pagos. Na verdade, para os dias, tenho planos de ir até a casa de Ana. Joaquim sorriu. 

— Vai rever a mãe? 

— Mais que isso, meu filho. Vou falar mui seriamente com Antônia, um assunto de suma importância que le diz respeito. Planos, meu filho... Después, por uma noite ou duas, um general merece o conforto da sua família.

Joaquim desviou os olhos para o campo; recordou Manuela e sentiu um aperto no peito. Bento Gonçalves acompanhou, de algum modo, o olhar vago do primogênito. 

— Pode deixar que mando lembranças para Manuela — bateu no ombro do filho. — Quando esta guerra acabar, vosmecês se casam numa grande festa. 

A Casa Das Sete MulheresOnde histórias criam vida. Descubra agora