Cadernos de Manuela

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Pelotas, 14 de maio de 1848.

 A morte de Pedro marcou o inverno de 1841. D. Ana passou muitos dias sem sair do leito, acamada de pesar, só melhorou com a chegada de José, em princípio do mês de julho. José chegou barbudo e esquálido, mancando um pouco da perna direita, e cheio de silêncios contemplativos. Entrou na casa, encontrou a mãe em sua cama, caiu aos pés dela e chorou como um menino. Vendo aquela fraqueza no filho mais velho, alguma coisa ressuscitou em D. Ana, a fibra de uma força mui antiga reacendeu a chama da sua essência maternal, e ela então sentou, tomou a cabeça de José em seu colo e, buscando forças que já considerava extintas, sussurrou-lhe segredos por muito tempo, ora sorrindo, ora chorando junto com ele, mas sempre exortando-o a prosseguir a vida. Depois disso, ergueu-se da cama pela primeira vez em muitos dias, mandou que lhe preparassem um banho, e foi ela mesma para a cozinha fazer uma buena refeição para o primogênito que voltava da guerra.

 Mas D. Ana nunca mais foi a mesma. Seus momentos de força passaram a ser intercalados por dias de profunda tristeza, quando as rugas do seu rosto se acentuavam como num sopro, e toda ela assumia ares alquebrados, as costas curvas, as mãos trêmulas, a pele amarelada como as folhas de um antigo caderno. A verdade é que envelhecíamos por dentro e por fora, cada uma de nós saboreando suas dores e tristezas e vazios. O Rio Grande envelhecia. Já não se viam os moços cavalgando pelas estradas, já não havia fandangos, churrascos, festas, quermesses. Batizavam-se as crianças mui discretamente, e quando alguém casava, era sob a sombra do medo de que a viuvez viesse ceifar aquele amor; a verdade é que não se vivia mais como antes.

 Mas, apesar dessa tristeza toda, a engrenagem das coisas continuava girando. Por vezes, éramos quase felizes, felizes de pequenas alegrias, de minúsculas e sutis emoções... Noutras raras ocasiões, havia a grande felicidade. Tentávamos apreciá-la como a uma fina iguaria, distendendo-a até o limite do possível, dilatando-a até que se evaporasse como um perfume. Foi assim quando nasceu a segunda filha de Perpétua, em fins de julho. Inácio estava conosco então. E aquele nascimento renovava-nos, purgava a casa da morte de Pedro. Perpétua Inácia de Oliveira Guimarães veio ao mundo numa manhãzinha tímida de inverno, pesando quatro quilos, e com um choro de tal monta que a todos nós ocorreu: a menina tinha herdado a força dos Gonçalves da Silva. Recebeu o mesmo nome da mãe e da bisavó, porque desde sempre assim tinha desejado minha prima. Inácio tomou a filhinha nos braços assim que a parteira o permitiu, e havia em seu rosto de pai tanta luz, que era como se a vida ainda tivesse uma chance, e aquilo tudo pudesse enfim terminar para nós todos. Como se pudéssemos retroceder no tempo, apagando todas as perdas, ficando apenas com as alegrias, como a chegada da pequena Perpétua.

 Porém, aquele inverno ainda me reservava surpresas. Certa tarde, encontrando-me à beira do fogo a tricotar, Inácio sentou ao meu lado e começou a entabular um assunto. A esposa e a filha dormiam no quarto, tecendo juntas a fina renda daqueles primeiros dias de existência em comum, o resto das mulheres da casa estava na cozinha, onde agora ficavam freqüentemente, aquecidas pelo calor do fogão a lenha, como se esperassem a chegada dos seus homens a qualquer momento, para o jantar, com a mesa posta. Eu apreciava Inácio, um homem sereno e gentil, culto. Por vezes, falávamos de livros que já tínhamos lido, falávamos da guerra e dos seus rumos. Naquela tarde, ele trazia consigo um romance. Acomodou-se na cadeira ao meu lado, folheou um pouco as páginas do volume de capa escura, e por fim me disse: 

— Tenho algo a le contar, Manuela. Apesar de tudo, acho justo que vosmecê saiba.

 Ergui meus olhos do trabalho. 

— Sucedeu alguma coisa? 

— Giuseppe Garibaldi foi embora.

 Ah, ainda aquela dor sabia me ferir como na primeira das vezes. Adaga mui afiada que penetrava minha carne até me varar a alma. Senti o fogo invadir meu rosto, acossar-me com sua fome de predador. Não que me envergonhasse daquele amor (quem, algum dia, se envergonharia do verdadeiro amor?), mas a agudeza daquele abandono sem adeus me desconcertava. Não que eu esperasse outra coisa de Giuseppe: partira exatamente como me chegara, sem avisos nem razões. Era um homem de marés, e solamente assim devia ser compreendido.

 Inácio observava as chamas na lareira, gentilmente, não querendo compartir da minha tristeza e da minha confusão. 

— Giuseppe foi embora como? Para onde? 

— Partiu em maio, Manuela. Com a mulher e o filho pequeno. Para o Uruguai. Abandonou a revolução. — Suspirou. — Não o condeno. Fez muito pelo Rio Grande. E as coisas mudaram por aqui. Já não lutamos mais por ideais, mas apenas por uma paz honrosa. E o italiano tinha ideais.

 Giuseppe partira. Seguia a viagem da sua vida. Meu sonho, enfim, morria também. Giuseppe Garibaldi não mais pisava o solo do Rio Grande. Tinha regressado ao mundo. Batera asas. Deixara de ser meu para sempre. Transcendera. Evolara-se. Havia ainda um mundo inteiro esperando por ele, embora, nesse tempo, nenhum de nós pudesse saber disso.

 E o silêncio das tardes daquele inverno de adeuses nunca mais me abandonou.

Manuela.

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