Estância da Barra, 2 de dezembro de 1835.
Ninguém soube explicar o causo do tal castelhano que viera ver Rosário naquele dia, nem nunca mais tocou-se no assunto. Lembro que, no dia seguinte, D. Ana trancou-se com ela no escritório e ali ficaram um par de horas. Rosário deixou o encontro com os olhos ardidos de choro, mas D. Ana acalmou-nos a todas com sua voz de certezas.
— Eu também já fui moça. Isso passa logo... Quando os homens voltarem, faremos uma baile. Até lá, Rosário terá esquecido essa história toda.
E foi assim. Não se falou mais no causo.
D. Antônia também pouco fez do acontecido. Tinha lá seus pensamentos e suas certezas. Preocupava-se com gente de carne e osso. Olhou-me, quando acabei de lhe narrar o encontro que a mana tivera, e me disse: "Vosmecê tem bom senso, Manuela. Esqueça esse assunto. Temos aqui mesmo muitos rio-grandenses que de nós necessitam... E quanto à sua irmã, deixe que fique assim... Essas tolices se curam com o tempo."
Mas, nos dias subseqüentes, Rosário tornou-se mais calada e esquiva, até hoje tem sido assim... Passa lendo por tardes inteiras trancada no escritório do tio, e é como se lá fosse um canto só seu, um outro país, que ela freqüenta por uma graça divina. Às vezes, passa muito tempo ao toucador, penteando os cabelos, trançando-os, até mesmo se lava e se perfuma para esses momentos... A mãe anda cabreira, coitadinha, mas tem lá outras angústias. Parece que Antônio se feriu numa escaramuça na Azenha, um imperial o teria cortado com a adaga. O pai e Bento se apressaram em nos escrever, dizendo ambos que fora coisa pouca, que Antônio estava bem e já curado. Apenas um arranhão no ombro, disseram ambos, que lhe custara uma noite de febre; com umas compressas e paciência, já fora sanado. Mas a mãe não acredita, quer ver o filho com os próprios olhos. Sonha que Antônio está muito ferido, gangrenando até, e acorda em prantos, os olhos riscados de veias vermelhas. D. Ana tem de servir-lhe um chá, e depois disso gasta muito tempo para demovê-la de tomar uma sege e ir para Porto Alegre por estas estradas, atrás do seu Antônio.
Ontem chegou um próprio trazendo extensa carta de Bento Gonçalves. Como acontece sempre, Caetana leu-a na sala, em voz alta, para todas nós. Contava a carta que o novo presidente da província, indicado pelo regente do imperador, chegara no dia anterior ao Rio Grande, vindo do Rio de Janeiro. Ouvimos apreensivas a voz de Caetana soprar o seu nome: José de Araújo Ribeiro. Filho de uma família daqui, um rio-grandense contra outros. E fiquei pensando se seria esse homem, esse sulista imperial, que traria em sua esteira todas as desgraças que enxerguei. Mas um nome? O que é um nome apenas, um indício de alguma sina? Será que nossos nomes traçam o futuro que nos cabe, será que Bento Gonçalves da Silva, quando ainda era um bebê, ao receber na pia batismal esse nome que lhe foi dado, recebia também a herança de comandar este povo? Será de Araújo Ribeiro a mão que empunhará a espada da nossa desgraça?
Bento Gonçalves virá ver-nos em breve. Caetana chorou ao ler esse trecho. Choramos todas. Minha mãe ficou imaginando se o irmão traria Antônio para estar com ela... Não sabemos. Mas tio Bento virá, e isto já nos alegra. Com ele, notícias; com ele, verdades. Aqui nesta casa, o tempo passa lentamente, embora a primavera tenha trazido novas cores a tudo, e os campos estejam floridos e belos como um salão preparado para o baile. Apenas Rosário, imbuída do seu novo distanciamento, pareceu não se alegrar com a chegada de Bento Gonçalves: talvez nem ouvisse direito o que Caetana nos lia.
Fugi pelos fundos, enquanto as mulheres permaneciam na sala comentando a carta e seus pormenores. D. Antônia estava conosco, pois mandaram buscá-la na estância para que também tivesse notícias: sua voz pausada e firme ouvia-se sobre todas as outras, e ela tomava providências para esperar com glória o irmão coronel.
No quintal, em torno do mate, Manuel, Zé Pedra e o vaqueano que trouxera a carta do coronel Bento trocavam frases esparsas enquanto sorviam a bomba, cada um a seu turno. Aqui não se fala muito, a gente do Rio Grande tem o peito fechado como um cofre. E um jeito de se alegrar para dentro, diz sempre D. Ana, quando falo da sisudez de nós todos, pois até eu tenho esse espírito controlado, essas palavras medidas que às vezes me deixam a boca com custo.
No entanto, apesar dos longos silêncios de chupar o mate, os homens pareciam muito contentes da vida, e tinham um certo brilho de orgulho nos olhos de sobrancelhas cerradas. E eu, fingindo que ia buscar um dos cachorrinhos de Nega, a cadela que deu cria na semana passada, pude ouvir da boca do mensageiro:
— Porto Alegre é nossa, estou les garantindo. Eu vi os imperiais fugirem como passarinhos. Logo teremos todo o Rio Grande.
Um calor de júbilo tomou-me. Escolhi um dos filhotes a esmo — a alegria até me turvava os olhos —, estavam todos numa grande caixa cheia de panos, Nega dormindo exausta, e tomei-o no colo. O bichinho tinha uma cara linda, e eu estava contente.
— Vosmecê vai ser meu, cãozinho. E vai se chamar Regente.
Regente agora anda no meu encalço, mas D. Ana não o quer na casa. Detesta bichos pelas suas salas, porque diz que trazem doença e pulgas. Pedi, e Mariana deixou que ele ficasse em nosso quarto, contanto que não chorasse. Regente não chora, sabe bem o que lhe convém. Enquanto escrevo estas linhas, ele está aqui ao meu lado, olhando-me com seus olhinhos pretos e alegres: é uma bolinha gorducha e luzidia, de pêlo baixo, grosso e negro, tem a cabecinha pequena e uma mancha branca escorre de entre seus olhos até o focinho. Tem estado comigo todos estes dias, e é bom ficar ao seu lado, porque não me pede assuntos, segue-me apenas. Tomamos banho na sanga, ontem à tarde, Regente nadou como se fosse um peixe, depois dormiu longas horas, deitado sobre a colcha velha que lhe serve de cama.
Amanhã, Bento Gonçalves chega à estância. As mulheres estão todas em polvorosa. D. Ana foi pessoalmente fazer a pessegada de que o irmão tanto gosta. E as negras não param, andam de um lado a outro, areando a prataria, arrumando a casa como um brinco, trocando as toalhas das mesas, arejando as cortinas de veludo, lavando de escovas o chão da salas. Até os cavalos foram escovados, e a peonada ganhou de D. Ana mate e carne para um assado. Estamos quase em festa, como se fosse Natal... Espero que esta noite não nos seja longa.
Manuela.
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A Casa Das Sete Mulheres
RomanceA Guerra dos Farrapos, ou Revolução Farroupilha (1835-1845) - a mais longa guerra civil do continente - , foi uma luta dos latifundiários rio-grandenses contra o Império brasileiro. As complexas razões do levante estão nos livros de História. O qu...