1842

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INTRODUÇÃO 

Nos primeiros dias de janeiro, Bento Gonçalves da Silva partiu de volta a Alegrete. Precisava estar na cidade com urgência; tinha compromisso marcado. Vicente da Fontoura iria tomar posse do cargo de ministro. Bento partiu sem saber que Mariana estava grávida, decisão tomada em conjunto por D. Ana e Maria Manuela, que não queriam perturbar o irmão, já tão incomodado, com assuntos daquela ordem.

 Quando o tio presidente atravessou a porteira e ganhou o pampa, teve início o suplício de Mariana da Silva Ferreira. Trancada no quarto, sem ver ninguém, passou os primeiros dias daquele ano chorando a sua desdita. Zefina levava-lhe a comida, e as notícias de fora vinham todas pela boca de Manuela. Mariana não pôde mais ver João. Desesperada, batia na porta pedindo que a soltassem, mas as negras, por ordem de Maria Manuela, faziam ouvidos moucos quando circulavam pelo corredor. Nem seus gritos, que vararam por duas tardes a casa, reverberando pelos cantos e pondo em polvorosa as crianças, amenizaram o coração de Maria Manuela.

 Mariana passou dias chorando, comendo pouco e tendo pesadelos. Imaginava seus anos sem João, temia pelo futuro da criança que trazia no ventre. Será que a mandariam embora, para um convento ou clausura pior? E o que seria feito do filho? As janelas do quarto haviam sido trancadas por fora. Somente Manuela vinha vê-la, pois ainda dormiam juntas, e tentava em vão acalmá-la em seus horrores. Não era possível que a ira da mãe perdurasse por muito, até as tias estavam descontentes com aquilo tudo, dizia Manuela. Era tempo de esperar, de não zangar ainda mais a mãe, que dentro em breve se tomaria de arrependimentos.

Mas Maria Manuela parecia irredutível. Descobrira em si uma dureza irredutível, seu coração cheio de mágoa por tantas desgraças náo podia se apiedar da filha. Mariana tinha lhe trazido o infortúnio e a vergonha. Viúva, ainda precisava se deparar com aquele horror, tomar atitudes que antes Anselmo tomaria, decidir um futuro para o bastardo que vinha no ventre de Mariana. Envolta nesses funestos pensamentos, Maria Manuela passava os dias a bordar numa poltrona, quase sem palrear com as parentas, deitando mui cedo e despertando ao alvorecer, maturando suas dores e cruzes sem saber exatamente o que fazer com a filha trancafiada no quarto. Escrever a Antônio de nada ajudaria; o filho estava na guerra, não poderia voltar a casa tão cedo. E nem poderia desfazer aqueles erros, apagá-los, devolver a Mariana a sua pureza e o seu futuro destroçado.

 Assim pensava ela, naquela tarde, sentada com o bordado ao colo, o rosto sério, duro, despido da beleza de outros tempos. D. Ana, ao seu lado, fiava e desfiava a lã, desencantada de qualquer serviço manual. A situação na casa estava insustentável. Fazia mais de uma semana que a sobrinha estava presa no quarto, e ela já começava a temer pela sua sanidade. Ainda tinha muito vivida em sua mente a imagem de Rosário transtornada, chorando amores por um fantasma. 

— É preciso tomar alguma atitude — disse D. Ana, quebrando um silêncio que já durava muito tempo. — João Gutierrez ainda está por aí. Mandei o Zé Pedra le dar serviços para longe, consertar as cercas do lado norte. Mas ele ainda está na estância.

 Maria Manuela deu de ombros

— Por mim, levava uma bala nos cornos — fez o sinal-da-cruz. — Que Deus me perdoe a má palavra, mas é um desgraçado. Merecia bem a morte.

 D. Ana suspirou. 

— Chega de sangue derramado nesta terra. Matar o desinfeliz não vai resolver as coisas. Amanhã o Manuel vai mandá-lo embora, já está decidido. Se ele tiver uma lasca de bom senso, nunca mais há de pisar nesta estância.

 Caetana bordava a um canto da sala. Sentia pena da sobrinha, pena daquele amor que murchava assim. Decerto, aquele não fora um bom começo, mas numa época de tantos sofrimentos e perdas, qualquer amor merecia respeito e ajutório. Tinham perdido tanta gente na família, era certo, pois, que aceitassem de braços abertos aquela criança que Mariana gerava. Para Caetana, aquilo tudo era um grande pecado que talvez ainda acarretasse uma desgraça maior... ela decidiu que falaria com D. Antônia, que era dura, por certo, tão reta e escrupulosa como o próprio Bento, mas talvez pudesse amenizar com sua influência aquele cruel castigo. A menina não podia passar os nove meses da gestação trancafiada no quarto. Precisava de sol, de ar puro, de alegrias — dentro em breve, poria uma criança no mundo. 

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