Estância da Barra, 23 de abril de 1836.
Os dias que se seguiram à notícia da guerra foram repletos de boatos e de angústias. Andávamos todas sobressaltadas, olhando o horizonte, como se dele viessem os socorros para nossos medos. Mas nada vinha, a não ser as chuvas que traziam o final do verão, e um silêncio que pesava nossas noites, e que D. Ana se esforçava para quebrar, tocando o piano por muitas horas.
Ficamos sabendo de batalhas travadas no passo do Lajeado, entre as tropas de João Manoel de Lima e Silva e as de Bento Manuel, o traidor e tocaio de meu tio. As notícias diziam também que os rebeldes estavam em maioria e que tinham causado grandes baixas nas tropas imperiais. Comemoramos com um assado, e D. Ana mandou que as negras fizessem uma panelada de doce de goiaba.
Mas também nos chegavam notícias tristes... Vinham da boca dos homens que passavam pela estância, a caminho de se alistar no exército de Bento Gonçalves. As notícias voavam como o vento daquele final de verão, um verão já úmido, de chuvas pesadas que deixavam o céu cinzento por muitas horas. Ficamos sabendo que um marinheiro rebelde, chamado Tobias da Silva, não querendo se render aos imperiais que o haviam cercado, explodira seu navio, estando a bordo ele, dezoito tripulantes, mais quinze cavalarianos, a mulher e dois filhinhos pequenos. Foi um peão do Brejo quem nos narrou o acontecido, e no final seus olhos ficaram úmidos de lágrimas. Vi D. Ana chorar na nossa frente, um choro contido e silencioso que convulsionou seus olhos negros, e tive medo, tive muito medo...
Nesse dia, minha mãe não apareceu para o jantar, alegando forte dor de cabeça. D. Ana mandou que as negras lhe levassem comida no quarto, mas o prato voltou intacto. Sei que minha mãe pensava em Antônio e no pai. Queria-os conosco. Que lhe importavam, afinal, o preço do charque, os sonhos de um governo próprio, até aquela confusa história de república, quando tudo o que almejava era a companhia do filho mais velho e do marido? Pobre minha mãe, teve sempre os nervos mais fracos... A longa guerra, que nesse tempo apenas insinuava suas sombras entre nós, estragou-lhe o espírito e incapacitou-a para o resto da vida... Mas, naquele tempo, Maria Manuela ainda tinha algumas esperanças. O altar da Virgem estava sempre aceso das velas que minha mãe e Caetana ali depositavam para acalmar seus medos ardentes. Minha mãe tentava ser como suas irmãs, mas não conseguia, não tinha a mesma força...
O filho de Manuel partiu em princípios de março para unir-se a uma tropa rebelde que passava ao norte. Ficamos todas na varanda, vendo-o partir em seu baio, ereto e solene como quem fazia uma coisa santa. Sua mãe chorava, no meio do campo, acenando com um lenço branco que parecia uma pomba desajeitada. Manuel nada disse, ficou calado vendo o filho ir embora. Se não fosse pelo muito que preza D. Ana, e pela obrigação que tem de zelar por nós, tenho certeza de que teria ido junto com o rapaz, passar sua espada pelo lombo dos malditos imperiais — como ele disse, mais tarde, para Leão, que, com seus doze anos, já estava ansioso por se reunir ao pai.
Quando o filho de Manuel sumiu pela coxilha, D. Ana mandou que Rosa escolhesse um pote bem grande de pessegada e mandasse levar para D. Teresa.
— Nessas horas, um doce é bom para acalmar a alma — foi o que a tia disse. Numa tarde de chuvas, já em meados de abril, quando o ar começa a esfriar lentamente, as noites já são quase frias, chegou na Estância um próprio. Tinha um lenço colorado amarrado na aba do chapéu. Foi recebido com festa e com agrados. Le serviram mate e bolo de milho. Era um homem duns trinta e tantos anos, olhos indiáticos, uma cicatriz rasgava-lhe a testa, funda, avermelhada. Trazia consigo uma carta de Bento Gonçalves, que entregou a Caetana assim que pôde. Pareceu tímido no meio de tantas senhoras importantes, mas logo, aquecido pelo mate, e de estômago cheio, contou-nos coisas do Rio Grande. Foi por ele que soubemos que o tenentecoronel Corte Real tinha sido capturado por Bento Manuel e agora estava preso lá pros lados do Caverá. Muito eu já tinha ouvido falar desse moço, José Afonso de Almeida Corte Real, dizem que é bonito, galante e muito inteligente. Pois a notícia da sua captura deixou-nos a todas tristes, principalmente a Mariana, que o vira num baile certa feita e nunca lhe esquecera a formosura.
Mas a carta de meu tio foi mais explicativa. Caetana leu-a para nós logo após a partida do soldado, que tinha de voltar para a sua tropa, e que foi levando na guaiaca um bom pedaço de bolo de milho. Meu tio nos contou que o tenente-coronel Corte Real empreendera manobra arriscada, inclusive desobedecendo ordens superiores, e atacara as forças de Bento Manuel com seus homens, que eram em menor número e menos preparados. Bento Gonçalves tentara perseguir o traidor e libertar seu oficial, mas o facínora se refugiara na Serra do Caverá, ficando atocaiado lá em cima, e negando-se à luta. Esperaram por muitos dias, até que a inquietude da tropa o fez desistir do cerco. As forças rebeldes estão em plena luta, conta o coronel, com sua letra dura e bem-feita, mas pequenas escaramuças e desordens atrapalham as manobras. Alguns soldados de Domingos Crescêncio atacaram e roubaram víveres de uma estância, e por isso houve um conselho de guerra. Eram quatro os infratores, e todos foram fuzilados como exemplo, na frente da tropa, "Foi um momento muito duro", escreveu meu tio, "mas é preciso que se mantenha uma disciplina rígida, senão os homens ficam incontroláveis." Mas também tiveram boas vitórias. O coronel Onofre Pires desbaratou um grupo de imperiais numa batalha vitoriosa, tendo feito duzentos e tantos prisioneiros, e trinta e poucos mortos.
Bento Gonçalves terminou sua missiva falando em saudades. E prometendo que, se tudo corresse bem, no inverno apareceria para estar na estância por uns bons dias, nos quais haveria de descansar de tantas batalhas e cavalgadas, e estar ao lado de sua esposa, filhos e parentas. Caetana terminou a leitura com a voz embargada...
Trinta e tantos mortos. Fiquei pensando nisso o resto da tarde. Mortos da nossa terra, que apenas estão do outro lado, que acreditam num sonho, ou lutam, por dinheiro ou glória, junto aos imperiais. Será que um deles, um que seja, foi nosso conhecido, freqüentou nossos saraus, esteve em nossa casa tomando um mate com meu pai, foi amigo de Antônio ou enamorado de uma das minhas irmãs? Não há como sabê-lo... Tenho medo do dia em que voltaremos para a nossa casa em Pelotas e contaremos os lugares vazios à nossa volta. Que Deus nos proteja a todos.
Estamos já em fins de abril. Os dias, pouco a pouco, se tornam mais curtos, e mais dourados, de uma beleza cálida, quase triste. Ou talvez sejam apenas os meus olhos.
Manuela.
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A Casa Das Sete Mulheres
RomanceA Guerra dos Farrapos, ou Revolução Farroupilha (1835-1845) - a mais longa guerra civil do continente - , foi uma luta dos latifundiários rio-grandenses contra o Império brasileiro. As complexas razões do levante estão nos livros de História. O qu...