Cadernos de Manuela

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Estância da Barra, 30 de junho de 1839.

Muitas coisas sucederam aqui na estância nos últimos tempos. Desde que Moringue veio atacar o estaleiro, todas nós nos tornamos mais temerosas, pois nos descobrimos vulneráveis aos ataques imperiais. Parece impressionante, mas eu nunca antes tinha pensado na guerra como uma coisa palpável, como uma coisa real. Era como se vivêssemos numa redoma, apartadas do mundo, e nada mais. Nem quando vi meu tio morrer em sua cama, tomado pela gangrena, nem quando me avisaram da emboscada que levou a vida do meu pai, eu jamais pensei na guerra como uma coisa de sangue e de músculos, como um bicho cruel e faminto. 

As horas daquele dia dezessete de abril foram terríveis para mim. Ah, contar os instantes como se fossem as moedas de um resgate, e segurar o pranto para que eu mesma não morresse antes de ter qualquer notícia dele. E pensar, a cada momento, que ele poderia estar morto, que talvez seu olhos não iluminassem mais este mundo, que meu Giuseppe estaria jazendo em algum pedaço de chão com uma lança atravessando seu peito. E o silêncio que nos impusemos... Sim, D. Ana e D. Antônia, sempre elas a zelarem pela casa e por nós, incansáveis e decididas — tanto que nem Caetana nunca ousou contrariá-las, estando sempre obediente às suas ordens e sugestões — , D. Ana e D. Antônia nos tinham proibido de chorar, nem por amor, nem por medo. E com tal faina, e com tal zelo, que quando Mariana deixou escapar um pouco do seu pranto, foi mandada à cozinha preparar um bolo para o chá que tomamos na sala fechada, em silêncio, como numa missa onde se cultua a angústia. E a todas nós foi dada uma tarefa a ser cumprida, para que não desandássemos pelos despenhadeiros do pavor que nos consumia. Eu mesma me vi bordando um pano qualquer, que cores tinha, nem me recordo, e a cada ponto engolia uma lágrima, até que minha garganta e minha alma ficaram salgadas de choro acumulado. E foi assim que aquele dia terrível passou. Demorou muito para que o sol se pusesse no horizonte: era como se ele risse de nós, risse de mim, que só queria saber qualquer coisa do meu Giuseppe. Quando a noite chegou, tudo foi mais tenebroso ainda. O escuro guarda os piores receios. O escuro é como uma arca repleta de velhas coisas empoeiradas. Não se pode abri-la, nem esquecê-la. A arca está no meio da sala, e a cada instante se tropeça nela. 

Naquela noite, jantamos sem fome. 

Somente muito tarde foi que bateram à nossa porta, e então meu coração acelerou como um cavalo em disparada pelas coxilhas, e nunca senti tanto medo em minha vida, porque, depois que abrissem aquela porta, tudo estaria irremediavelmente perdido ou irremediavelmente salvo. Era o negro Procópio; soubemos então da batalha, e que meu Giuseppe estava vivo e mandava notícias. Renasci com aquelas palavras. E odiei aquele dia com cada átomo de mim mesma, e tanto, que para sempre hei de recordá-lo negro e viscoso como um morcego em minhas lembranças. Mas pude, enfim, mesmo com medo dos imperiais que talvez estivessem por perto, dormir em paz. Garibaldi estava vivo, este mundo ainda nos abrigava a ambos, e isso era tudo que me bastava para ser feliz. 

Na manhã seguinte, Zé Pedra encontrou um imperial morto na entrada da fazenda. Trouxe-o arrastado até os fundos da casa. Era um jovem das redondezas que outrora eu vira cavalgando por perto, não devia ter então mais do que dezenove anos. Fora morto com dois tiros. Seu rosto cinzento e barbudo me trouxe pena e nojo. Morrera por que, afinal? E, estando vivo, não teria ele matado meu Giuseppe sem qualquer consideração, se fosse capaz de tanto? Por que se lutava e por que se morria? Nunca hei de sabê-lo. E nenhum regime sob o céu me haverá de justificar esta guerra. Talvez por um sonho. Por liberdade. Por ela é que se luta. Como Giuseppe Garibaldi. Ele tem esse sonho e o persegue pela vida, mesmo muito longe deste Rio Grande, em outras terras ainda mais distantes da sua pátria, Giuseppe sempre lutou por seu sonho. 

E eu sempre sonhei com ele. 

Mas luto pouco, porque não tenho armas.

*

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