Em meados de abril, quando os dias começavam, lentamente, a encurtar, foi que Joaquim chegou à estância, num final de tarde de sol pálido. Veio escoltado por João Congo — haviam percorrido longos caminhos, procurando as estradas desertas, os descampados, fugindo das tropas inimigas que se espalhavam nas vilas e cidades, aqui e ali, naquele outono silencioso, pelo pampa.
A mãe o esperava na varanda, não porque soubesse de sua chegada — nenhum próprio viera avisá-la —, mas apenas porque tinha sonhado com o filho durante toda a noite anterior, e esse aviso onírico fora o bastante para ela ter certeza de que seu Joaquim retornava a casa.
Caetana estava postada no primeiro degrau, usando um leve vestido branco que surrupiava alguns dos seus trinta e oito anos, e que fazia brilhar a sua pele trigueira. Mal Joaquim apeou do tordilho, Caetana venceu a pequena distância e atirou-se nos braços do filho. João Congo, enquanto tomava as rédeas do cavalo do patrãozinho, sorriu discretamente.
— Hijo, hijo de Dios... — Caetana correu os dedos pela face barbuda de Joaquim. — Vosmecê está outro, um hombre.
Joaquim vestia roupas simples, empoeiradas. As botas pesadas estavam cobertas de barro seco, vermelho. Os mesmos olhos que ardiam na face de Bento Gonçalves se repetiam naquele rosto de homem moço, bonito.
— Hay cosas que nos tornam homens, mãe. — Atirou-se com ganas àquele abraço morno, com cheiro de perfume.
Não tardou para que D. Ana, Maria Manuela, Caetano, Bento e as moças se achegassem por ali, sorridentes. Bento correu para o irmão, pedindo notícias do pai, detalhes da fuga fracassada, da noite em que abordaram o forte. Joaquim fez um gesto largo de braços, se entristeceu.
— O que le dizer, mano, se tudo deu errado para o pai? Foi uma noite eterna. Mas Onofre e Corte Real conseguiram fugir a nado e chegaram ao barco. Ao menos, essa vitória tivemos... O Rio Grande precisa de todos os seus homens. — Olhou a mãe nos olhos, vendo ali uma cintilação de medo. — É por isso que vim — disse. — Mal me recupero desta viagem, vou procurar Onofre e os outros.
Bento abriu um sorriso jubiloso:
— Vou com vosmecê, Quincas. — Todos vão, está certo. — D. Ana tomou voz na conversa, abraçando o sobrinho.
— Todos vão... Mas isso não é para hoje, que vosmecê mal chegou e nem nos deu um abraço que seja, Quincas. Por hora, vamos para dentro. Deixa que o Manuel e o Congo cuidam do cavalo e dos seus pertences. Vosmecê precisa de um banho... E depois queremos todas saber desse mundo aí de fora. — Fez um gesto para a varanda, onde estavam as moças. — Afinal, suas primas estão aqui, ávidas por notícias e segredilhos.
Joaquim Gonçalves da Silva ergueu seus olhos para a varanda. Viu Manuela, alta e esbelta, parada entre as outras. O rosto vivaz, a pele de seda, os olhos ardentes da prima lhe trouxeram uma morneza boa no peito. Joaquim fitou-a por um longo momento, depois tomou a mão de Caetana e disse, para ela e para a tia:
— Então vamos para dentro, les dou razão, como sempre. Devo estar cheirando igual a um cachorro molhado. E eu e Congo não comemos coisa que o valha já faz bem uns dois dias.
Antes de entrar na sala, ao passar pelas moças, seu olhar caiu sobre Manuela. A moça sorriu serenamente. Também ela, além da tia, tivera sonhos naquela noite: sonhara com o mar, com um marinheiro que vinha de longe, que vinha para ela.
*
Rosário entrou afobada no pequeno escritório que cheirava a madeira e segredos. A noite já se instalara sobre o pampa gaúcho, com seus pios de corujas, suas sombras, com uma lua alta e muito clara que estendia translúcidos braços sobre o jardim e o campo. Sim, ela perdera a hora do encontro. Pela primeira das vezes, deixara Steban esperando.
Depositou o candelabro que trazia sobre a escrivaninha de mogno, ajeitou as saias do vestido, tirou o xale de lã de sobre os ombros. Fazia frio lá fora, naquela noite de maio, um frio seco, ardido, que antecipava um inverno duro. Ela se atrasara por causa de Joaquim e de Bento — ambos haviam partido, fazia pouco, para encontrar as tropas de Mariano de Mattos, na fronteira. Sim, os primos tinham ido para a guerra, para desespero de Caetana, que agora devia estar chorando em seu quarto — mais dois do seu sangue sob o fio dos sabres inimigos, e Bento Gonçalves ainda preso, o que seria do futuro? Rosário sentiu pena da tia, cujos olhos de relva tinham se tornado opacos nos últimos dias. Em Manuela, não vira grandes sofrimentos pela partida de Joaquim, não mais do que os das outras da casa — Manuela por certo ainda não amava o primo que lhe fora destinado.
Rosário sentou na poltroninha de couro que sempre ocupava, ficou esperando. Ele viria. Sempre viera, não a deixaria ali, sofrendo, naquela noite triste de despedidas. Pensou nos primos, indo para a guerra, sob aquele céu frio e estrelado, alheio ao que sucedia aqui embaixo. Iam felizes, os dois filhos do presidente da província. A recente vitória em Rio Pardo lhes tinha trazido novas esperanças. Os farroupilhas haviam infligido aos legalistas uma dura derrota. Lembrou da voz do senhor Inácio, que viera havia poucos dias contar a novidade. Cheio de brios e com um olho posto em Perpétua, dissera ele: "Os de lá viram sumir oito peças de artilharia, mil armas de infantaria e todos os víveres de que dispunham, aqueles servos da escravidão, aqueles imperiais." Haviam sido essas as palavras de Inácio, e todos na casa comemoraram com um cálice de licor. Trezentos mortos e setecentos prisioneiros imperiais, fora o saldo de tal batalha. E agora os republicanos estavam cheios de novas energias, o general Netto tomava o rumo da capital com suas tropas para mais um cerco.
Rosário esfregou as mãos frias. Aquela vitória significava mais tempo na estância, mais espera. Às vezes, desejava simplesmente que perdessem a guerra, que tudo voltasse a ser como era antes e que ela pudesse retornar a Pelotas. Mas os gaúchos eram teimosos, e por conta disso ela via seus melhores anos escorrerem naquele limbo sem fim.
— Steban... — chamou ela, angustiada. Precisava vê-lo. Steban era a única coisa feliz daqueles dias. — Steban, onde vosmecê está? Me atrasei... Os primos partiram faz pouco, não pude vir antes.
O mesmo rosto pálido e bem talhado surgiu das sombras em seu uniforme de oficial. O cabelo castanho e revolto escapava da faixa ensangüentada que lhe cingia a testa alta, bem-feita.
— Pensé que no vendrías, Rosário. — A voz dele era doce.
Rosário sorriu com amor, os olhos azuis arderam de alegria. Pensou no dia em que contaria ao pai daquela paixão. Decerto, não haveria qualquer problema, fazia tempo que a Banda Oriental estava em paz com o Rio Grande.
— Meus primos partiram para a guerra. Os dois filhos de Bento Gonçalves. — Ao ouvir aquele nome, Steban empalideceu ainda mais. Rosário escusou-se. Sabia que Steban, por algum motivo muito segredado, temia o tio. Mas havia tantos segredos em Steban, tantos... — Eles foram para a fronteira. Os revolucionários venceram uma grande batalha em Rio Pardo, estão fortes agora. Fizeram setecentos prisioneiros, Steban.
— Como en la Cisplatina... — disse ele. — Hablemos de otros temas, Rosário. He pensado mucho em vos...
Rosário sentiu o rubor queimar suas faces. Respondeu que também ela estava assim, havia já muito. Não suportava mais aqueles segredos, aquele mistério, os encontros fortuitos no escritório.
— Deixe que eu traga minha mãe até aqui um dia desses, Steban. Quero que ela le conheça.
O jovem abriu um sorriso triste.
— Todavia no és possible, Rosário...
— Quando, Steban?
Uma súbita rajada de vento varou o postigo da janela semi-aberta. A sala tornou-se fria e estranha quando as três velas do candelabro se apagaram.
— Diacho! — resmungou Rosário. Não tinha meios de acender as velas ali. Restou um tanto no escuro, sentindo a brisa fria lamber seu rosto. Até que teve medo, não sabia do quê. Medo de escuro não era, nunca fora dada a essas tolices; era um medo maior, uma sensação de perigo. Chamou por Steban ainda uma vez, recebendo somente o silêncio em resposta. Ele tinha partido sem um adeus. Amanhã falarei com ele, decidiu-se. Agarrou o candelabro e saiu para a meia-luz do corredor. Dentro das rendas do vestido, seu coração batia descompassado.
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A Casa Das Sete Mulheres
Roman d'amourA Guerra dos Farrapos, ou Revolução Farroupilha (1835-1845) - a mais longa guerra civil do continente - , foi uma luta dos latifundiários rio-grandenses contra o Império brasileiro. As complexas razões do levante estão nos livros de História. O qu...