Introdução
" Minha querida Caetana,
Muito sofri quando o dia trinta e um de dezembro nos pegou separados, eu tão longe de vosmecê e dos nossos filhos, a família apartada, brindando a chegada deste misterioso ano de 1836 sabe-se lá com que apreensões na alma. Pensei em usted, nas irmãs e nas meninas, todas reunidas na estância, e espero que, mesmo sem nós, tenham feito lauta ceia e brindado para que a sorte nos acompanhe nesta jornada. Pensei em Joaquim, Bento e Caetano, no Rio de Janeiro, os três solitos, quando sempre nos reunimos em mesa farta, os irmãos, cunhados e primos, para a noite de final de ano. Porém, minha Caetana, em tudo este ano de 1836 parece ser diverso dos outros, e não o reconheço sem uma certa agonia.
Aqui em Porto Alegre as coisas precipitam-se dia a dia, e a cada novo momento parece mais remota a possibilidade da paz. É por isso que, em vez de tomar do cavalo e ir ver-te como eu gostaria, apenas le envio esta carta, escrita às pressas, à luz do candelabro, nesta modorrenta madrugada de janeiro. Faz muito pouco, o conde, sempre cortês e gentil nos seus modos e sentimentos, deixou cá comigo uma poesia que copiou de próprio punho, para que eu a envie junto com esta. Assim é que Tito manda as suas lembranças, minha Caetana.
No início deste janeiro, após muitas confusões ocorridas nas reuniões da Assembléia, o presidente interino desta província, o deputado Marciano Ribeiro, enviou ofício a Araújo Ribeiro, convocando-o a comparecer à Assembléia Legislativa para que tome posse do cargo que é seu. Pois, dias mais tarde, chega-nos a notícia de que o tal Araújo Ribeiro tomara posse em Rio Grande, um insulto que não se pode engolir. E mais, minha cara, sendo que estas são as primeiras coisas que sucederam neste ano, mas não ainda as piores. Meu tocaio, o infame Bento Manuel, finalmente mostrou suas garras: reúne tropas em São Gabriel, para pelejar em nome do imperador, e diz que só obedece às ordens do presidente nomeado pela Corte.
Estamos todos à espera dos fatos, que certamente vêm por aí. Já começamos a tomar medidas e a fazer reuniões de comando, para o caso de a guerra realmente acontecer. Decidimos, no entanto, não tomar quaisquer atitudes até a data de quinze de fevereiro, quando então, caso Araújo Ribeiro não volte atrás em seus hediondos atos, começaremos uma guerra em nome desta província e da sua mui honrada gente. Os homens aqui dizem que a guerra tem data certa. Onofre está ansioso por batalhas. Não posso me esquivar a esse fato, no entanto, meu temperamento comedido me faz esperar sem sobressaltos nem vãos anseios. Dentro de um mês saberemos o rumo que tudo isto há de tomar.
Cara Caetana, sei que estas notícias que ora le dou hão de deixar inquieta a sua alma. Peço que tenha calma, e que rezes por esta terra. É sua a missão de informar estes fatos às outras da casa, mas que não se assustem, nem temam. Os outros estão todos bem, ainda há pouco comemos juntos um gordo churrasco.
E outra coisa, trate junto com Antônia da venda de uma ponta de gado e envie parte desse dinheiro aos meninos, no Rio. Caso seja necessário, quero que eles estejam preparados para voltar ao Rio Grande.
Fique com meu carinho e meu amor,
Bento Gonçalves da Silva
Porto Alegre, 20 de janeiro de 1836."
O final daquele mês de janeiro demorou muito para gastar-se, escorrendo em dias azuis de calor intenso, nos quais o céu mostrava-se impávido, sem nuvens que trouxessem um refresco ou a promessa de chuva. Os primeiros dias de fevereiro vieram carregados de nuvens negras, baixas, o campo perdia-se em nebulosidades ao anoitecer, e uma inquietude ainda maior assolou as mulheres da Estância. A carta de Bento Gonçalves espalhara entre elas uma angústia muda e crescente. Quiseram rever os dias de sol, quando ainda havia a graça dos banhos na sanga, dos passeios de barco com D. Antônia pelas margens do Rio Camaquã, do suco fresco e espumoso que sorviam em grandes goles quando chegavam das cavalgadas, a pele úmida de suor.
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A Casa Das Sete Mulheres
RomanceA Guerra dos Farrapos, ou Revolução Farroupilha (1835-1845) - a mais longa guerra civil do continente - , foi uma luta dos latifundiários rio-grandenses contra o Império brasileiro. As complexas razões do levante estão nos livros de História. O qu...