Cadernos de Manuela

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Pelotas, 30 de junho de 1867.

Quando março ia se esgotando, trazendo lentamente o outono para nossa terra, as coisas começaram a acontecer. Não é preciso dizer que cada notícia, cada suspiro cifrado levavam muitos e muitos dias para chegar até a estância, tendo traçado para isso caminhos tão tortuosos que, muitas vezes, desconfiávamos daqueles segredos, e não sabíamos se era causo de estar triste ou de estar feliz; se, lá no Rio de Janeiro, as coisas estavam andando como nos informavam, ou se tudo corria ao inverso, como um rio enfeitiçado, e apenas nós, oito mulheres no pampa, críamos que as engrenagens estavam começando a se mover novamente. 

D. Antônia pernoitou muitas noites conosco, nesse princípio de outono de 1837, pois que se nos chegasse qualquer notícia — e elas vinham pela boca de oficiais, por cartas escondidas nas guaiacas de impensáveis tropeiros, pela mão de todo tipo de criaturas a serviço dos republicanos — era bom que estivéssemos todas juntas, para comemorar ou para prantear um revés. 

Sabíamos que um visconde no Rio de Janeiro estava tramando, junto com tantos outros, uma operação para libertar o presidente da República Rio-grandense da Fortaleza de Lage, e também Onofre Pires, Zambeccari, o italiano, e Corte Real, que estavam na Fortaleza de Santa Cruz. Irineu Evangelista de Souza, o visconde de Mauá, estava na ponta de uma intrincada rede, segundo nos explicou D. Antônia, uma rede que ia muito além dos limites do Rio Grande, que se estendia por diversos estados do Brasil, até o Nordeste, e que ambicionava a república. Portanto, para eles, ajudar a causa rio-grandense era fundamental. 

Fechadas naquela casa onde a vida se regia pelas horas de comer e de rezar, era impossível que compreendêssemos os intrincados caminhos daquele sonho. Tudo para nós se baseava na simplicidade da carne com arroz, da hora da sesta, dos banhos de sanga. Imaginar que, na Corte, tramavam-se coisas tão misteriosas, como nos romances que líamos nas longas tardes de modorra? Nem sempre eu podia acreditar... Mas a verdade é que Joaquim estava no Rio de Janeiro, também ele tentando libertar o pai. A verdade era que a lenda sobre meu tio chegara já tão longe das nossas terras, e eu imaginava homens vestidos de negro, reunidos num local ermo, ao redor de uma mesa onde tremulava uma vela, como piratas noturnos, tramando passo a passo um plano para arrebatar o general daquele forte e mandá-lo de volta ao Rio Grande, onde era o seu lugar. 

Lembro muito bem que, naqueles dias, Caetana esteve oscilando entre o júbilo e o temor, e ora a víamos bela, com seus resplandecentes olhos de esmeralda, ora a víamos pálida, os cabelos desfeitos, rezando, as mãos tão apertadas sobre o peito, que era como se estivesse se agarrando a um muro invisível, estando a ponto de cair num penhasco. Bento e Caetano andavam pelos cantos, como se da concentração de suas almas dependesse o bom sucesso daquilo tudo. Mas a verdade é que eu via nos olhos de Bento uma angústia cruel. Ele queria estar perto do pai, assim como estava Joaquim. Aqueles dias de forçada paz, na estância, estavam corroendo o seu espírito. Estive com ele, numa tarde, e, à sombra do umbu, conversamos. Bento ouviu meus pedidos de calma, as coisas tomavam seu rumo e não tão rapidamente como desejávamos, haja vista que eu mesma estava ali na Barra havia já dois anos. E o tempo se escoara assim, como areia pelos meus dedos, sem que eu quase percebesse a sua totalidade. 

— Estes dias estão me custando a alma. Já sou um homem, não é certo que fique aqui, sem nada para fazer, enquanto os tios, os primos, todos os outros homens do Rio Grande pelejam por esses campos, e enquanto meu próprio pai está preso, lá na Corte. 

— Nem que vosmecê parta agora, Bento, a sua ajuda será útil. A viagem ao Rio de Janeiro é longa, quem sabe usted chega lá e seu pai já partiu. Queira Deus... Mas também não sei muito o que le dizer, os homens não foram feitos para a espera. Esses humores são femininos, por isso é que parimos. Nós, sim, fomos feitas para esperar, sempre. 

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