Cadernos de Manuela

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Pelotas, 14 de agosto de 1883. 

O final daquele inverno de 1837 foi triste para a nossa família. Minha mãe perdeu tanto de seu viço, que, em poucos dias, parecia não mais aquela dama elegante, de olhos ardentes, mas uma senhora pálida, de consistência frágil, cujas roupas negras da viuvez cobriam de dor cada gesto seu. Nunca mais vi em seus olhos a mesma alegria de antes, assim como nunca mais vi meu pai, desde a tarde de 18 de setembro de 1835, quando nos despedimos dele, na varanda de nossa casa, aqui em Pelotas. 

O tempo em que nos mantivemos distantes se ocupou de amenizar em meu peito a dor da sua perda — durante os dois anos e meio que a guerra já custava, meu pai não tinha ainda voltado para nos rever, envolvido nas labutas da revolução. Anselmo da Silva Ferreira já era para mim, naqueles dias que antecederam a sua morte, quase um fantasma dos tempos idos, em que vivíamos na cidade, entre saraus e festas, numa alegria buliçosa que a guerra acabou por levar embora para sempre. Rosário e Mariana também sentiram sua morte de um modo anestesiado. Foi um adeus sem velório, sem enterro e nem nada, apenas aquela notícia sem contornos, aquela vaziez que preenchia certos momentos, quando pensávamos nele e nos dávamos conta de que seus pés não mais pisavam este chão, e de que seus olhos, que sempre tinham amado as cores do pampa, agora deviam vislumbrar paisagens de uma outra vida. 

Coube a Antônio e aos primos a honra e a desgraça de recolher seu corpo frio, de enterrá-lo em alguma coxilha cuja floração tenha escapado das rudezas do inverno, e de vingá-lo como um homem de bem e de boa família. Talvez por isso, quando revi Antônio, percebi em seus olhos uma vagueza de dor e de raiva que nunca antes estivera ali. A vingança não lhe fora bastante para aplacar seu sofrimento. Também meu irmão ficou marcado para sempre pela morte súbita e cruel do nosso pai. Acho que, até o fim, Antônio levaria na alma a imagem do pai morto, sangrado naquela tocaia — e isso mudou alguma coisa nele para sempre. Mas a guerra nunca deixa as pessoas como as encontrou, nunca, e Antônio não escapou desse fado. 

Já em meados de setembro, José ficou recuperado. Passou assim algum tempo conosco, tempo esse que gastava em longas caminhadas pela estância e em conversas com a mãe e com os filhos de Caetana, que tinham muitas curiosidades sobre a guerra. Quando esteve melhor, José voltou a cavalgar, e saía com o gado para vendêlo, organizou algumas coisas da casa, depois partiu. A peleja o chamava outra vez. Despedimo- nos dele na varanda, todas nós, cada uma com um aperto na alma, e D. Ana chorou um pouco, sentada na cadeira de balanço, tecendo furiosamente um xale ao qual nunca punha fim, como uma Penélope dos pampas. 

Durante a convalescença de José, o senhor Inácio veio nos visitar muitas vezes. Não escapava a nenhuma de nós o motivo real daquelas suas aparições: estava ele enamorado de Perpétua, e era por ela plenamente correspondido, embora essa paixão não passasse de alguns olhares trocados, de rubores súbitos no rosto da prima, e de uns empréstimos de livros que os dois promoviam entre si, mais com o intuito de conhecerem seus gostos do que com o desejo de ter leitura para as horas vagas do dia. D. Antônia ou Caetana vigiavam esses serões, pois o senhor Inácio era casado, muito embora, a cada visita, tivesse uma notícia triste a nos dar: a saúde de sua esposa, Teresa, não cansava de piorar. 

Eu vi Perpétua soluçando pelos corredores da casa muitas vezes: estava ela presa de um amor cujo êxito implicava o sofrimento de outrem, e disso ela tinha muitos remorsos, por causa dos quais não se cansava de mandar ungüentos e xaropes para a senhora Teresa, que se hospedava na fazenda de parentes, não muito longe de nós. Foi Rosário quem um dia lhe disse: 

— Não seja boba, não chore por isso. Vosmecê nada faz além de receber as visitas do senhor Inácio, e de prosear um tanto com ele. Não seja tão ingênua, prima: na guerra e no amor, tudo é permitido. Afinal, não foi vosmecê quem envenenou os pulmões da senhora Teresa. 

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