1837

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INTRODUÇÃO

D. Ana fizera questão de que comemorassem a virada do ano, que fizessem uma boa ceia e que mandassem carnear um novilho para o pessoal da fazenda. Dizia que a tristeza era feito pó, quando se entranhava numa casa, não saía mais. Era preciso cuidar para que a alma permanecesse arejada, apesar de tudo. Ela mesma chorara de saudades do seu Paulo, enquanto se arrumava para a festa; porém, logo depois limpara as lágrimas e fora estar com as cunhadas e os sobrinhos. Afinal, a vida seguia como um rio. E era preciso remar. 

O senhor Inácio de Oliveira Guimarães viera trazer seus votos de felicidades à família. Chegou passado das nove horas, muito bem composto como andava sempre. Do seu lugar na sala, Rosário viu o rosto da prima Perpétua tingir-se de carmim quando o visitante apareceu na soleira da porta. Trazia consigo a esposa, uma senhorinha mui apagada de graças, que se chamava Teresa. Nem a presença da mulher acalmou o nervosismo de Perpétua. 

Estavam todos na sala, tomando ponche e proseando. D. Ana tocava umas modinhas ao piano. As negras arrumavam a mesa da ceia. Rosário aproveitou o alarido provocado pela chegada das visitas, enveredou pelo corredor semi-escurecido. O escritório cheirava a sonhos e coisas guardadas. Ela abriu a janela, e o perfume dos jasmins se insinuou para dentro da peça como se fosse o hálito da noite. A luz tênue do candelabro que trouxera fazia os livros perderem a forma nas prateleiras da estante. Rosário sentou, ajeitando bem as saias do vestido novo, e esperou. O cheiro de jasmins ficava mais e mais forte. 

— Steban.... 

Ele pareceu brotar das prateleiras da estante. Rosário não se assustou; ao contrário, sentiu uma morneza boa derramar-se dentro do seu peito quando viu o brilho daqueles olhos oblíquos e tristes. Steban usava um uniforme de gala. 

— Tuve miedo que no venieras a verme. — A voz dele era puro cristal. Ele sorriu, mostrando os dentes alvos, e seu sorriso clareava o rosto bonito, quase sempre tão pálido. 

Rosário percebeu a atadura nova, limpa, ao redor da testa de Steban. Sentiu o impulso de se erguer, de tocá-lo. Havia muitos meses que desejava tanto, sonhava com isso. Acordava no meio da noite com o nome dele ainda em seus lábios. Mas sabia que não era possível, não ainda. E Steban tinha muito medo dos homens da casa. El general. Não podia ouvir o nome de Bento Gonçalves. Rosário vira uma vez, ao pronunciar o nome do tio por acaso, a atadura ficar tinta de sangue rubro e tépido, e Steban se desfazer como fumaça pelas frestas da estante dos livros. 

Rosário conteve a ânsia de abraçá-lo. 

— E los otros? No vinieran para la fiesta? 

— O tio está preso, Steban. E meu pai anda na guerra. Mas Antônio está aqui. Se vosmecê quiser, chamo meu irmão. Assim vosmecês se conhecem. Steban estendeu o braço, como que para tocá-la, mas a mão foi caindo lentamente, como um animal ferido. 

— No llames tu hermano, Rosário... No es la hora. 

Rosário sentiu os olhos úmidos de lágrimas. Ajeitou o vestido, tentando disfarçar o nervosismo. Nunca era a hora. Queria que os outros soubessem. Aquele silêncio pesava feito chumbo em seu peito. Ela respirou fundo, ergueu novamente o rosto. O jovem oficial uruguaio lhe sorria. Como era garboso... 

— Vosmecê está muito bonito hoje — teve coragem de dizer, e sentiu-se ruborescer levemente. Se D. Ana ou mesmo a mãe a ouvissem...

Da sala, vinham a melodia do piano e um som de vozes e de risos. O cheiro de jasmins queimava sua garganta. Faltava pouco agora para a meia-noite. E os olhos de Steban eram límpidos como o céu do verão nas paragens.

*

Antônio partiu no dia seguinte, ao alvorecer. Bento Filho quis acompanhar o primo, arrumou algumas coisas numa trouxa, estava decidido a ir para a guerra ao lado do general Netto. 

A Casa Das Sete MulheresOnde histórias criam vida. Descubra agora