Cadernos de Manuela

84 4 0
                                    

Pelotas, 11 de março de 1903.

Eu ainda não sabia, mas, enquanto sofríamos aquela derrota que deixou meu tio na cela por mais algum tempo, uma grande engrenagem começava a mover-se como um sol que vinha em minha direção. A República Rio-grandense traria para mim o único homem da minha vida, e esse homem não era Joaquim, que nos chegou no final de abril, e por quem não pude sentir mais do que carinho e uma certa vagueza quando derramava sobre seu rosto os meus olhos, e ele me fitava com um meio sorriso nos lábios famintos. 

Pelo mar, de muito longe, chegava aquele a quem eu pertenceria por todos os meus dias. Vinha de uma terra mágica e sofrida, e vinha com sonhos em sua alma, sonhos esses que o uniram ao meu tio e aos outros, e que o fizeram dedicar toda a sua bravura e sabedoria à causa da nossa República. Sim, enquanto eu via o inverno chegar até nós, com suas noites frias e enevoadas, com suas árvores de folhas amareladas, com o vento, sempre o vento, que açoitava as nossas madrugadas insones, ele hasteava a sua bandeira, içava as velas e ganhava o mar. Ainda faltaria muito para que me chegasse, com seus olhos da cor do ouro velho e seu sorriso de menino — a vida nem sempre oferece caminhos fáceis a esses homens que nascem com a faina e a sina de mudar o mundo. Muito ainda teria ele que trilhar, venceria até mesmo a morte, mas o primeiro passo estava dado, a primeira lufada de vento o havia soprado para essas paragens e para os meus braços de mulher apaixonada.

Eu amava Giuseppe Garibaldi desde muito antes de conhecê-lo, na tarde em que nos chegou com suas falas enroladas e seus modos corteses e alegres; eu já o amava desde que o pressentira, no começo de tudo, naquela primeira noite de 1835, ainda na varanda de minha casa, num arremedo de futuro que meus olhos tinham podido captar por graça de algum bom espírito. Mas como falar desse homem? Como contar dessa criatura ao lado de quem vivi os melhores instantes dessa minha existência, e por quem até hoje espero e anseio, a cada instante, a cada noite, no frescor de cada alvorada, de quem sinto o tênue perfume entre as fronhas do meu travesseiro, nos velhos vestidos daquele tempo, até mesmo nas tranças de meus cabelos desbotados? 

Vivi por Giuseppe Garibaldi como muito poucas mulheres viveram por um homem, um homem que nunca foi de todo meu, mas de quem pude compreender a essência — era um cometa, uma estrela cadente —, justo que restasse tão pouco ao meu lado. Era um ser sem paradeiro, e se não segui com ele, foi unicamente porque a vida não o quis. Hoje, passados todos esses anos, quando, ao me olhar no espelho, já nem reconheço mais a Manuela que fui naqueles tempos, hoje ainda o amo com a mesma força e a mesma dedicação. Ele não voltou para mim, mesmo depois de ter ficado sozinho e com dois filhos nos braços, porque é como um pássaro, teve sempre a necessidade de migrar, de seguir o verão dos seus sonhos, mas me levou consigo em algum lugar de sua alma, eu sei. 

Pois, voltando para aqueles tempos da estância, quando a guerra ceifava tantas criaturas e tanta juventude, contarei o que começou a suceder em maio de 1837: Giuseppe Maria Garibaldi recebeu a carta de corso para a sua Mazzini — chamada desde então pelo nome de Farroupilha —, assinada pelo general João Manuel de Lima e Silva, e que lhe dava autorização para singrar os mares rumo ao sul, como corsário da República Rio-grandense. Assim, partiu o italiano, da cidade do Rio de Janeiro, com uma tripulação de doze homens. Na sumaca Farroupilha levavam armas e munições escondidas sob um carregamento de carne defumada e mandioca. 

Começava aí o longo caminho que traria Garibaldi até a estância de minha tia, D. Antônia. Se eu pudesse voltar no tempo, retroceder todos esses anos, sofrer tudo o que sofri, nem que fosse para vê-lo por um único instante, como o vi pela primeira vez, parado em frente à nossa casa, naquela tarde morna e plácida de outubro, os cabelos fulvos e inquietos cintilando ao sol do pampa, se eu pudesse pôr o tempo a pisar as suas próprias pegadas, eu não hesitaria... Ainda ouço o metal de sua voz em meus ouvidos, quando, ao ver-me, junto com as outras, postada na varanda — afinal, era a primeira vez em muito tempo que um estranho vinha estar conosco, e sob o aval de Bento Gonçalves — , me olhou, somente a mim, com seus olhos sedentos e disse: 

— Como stai sinhorina? Io me chiamo Giuseppe Garibaldi. E la buona fortuna me trouxe até aqui. 

Mas isso foi em 1838, e, naquela primavera, o general Bento Gonçalves já estava solto, Perpétua já estava noiva de Inácio José, e eu ainda tinha meus dezoito anos, e não os oitenta e três que carrego hoje, por entre essas minhas rugas que mais parecem os vincos de um vestido de baile. Isso foi em 1838, quando todos nós ainda tínhamos sonhos.

Manuela.

*** 

A Casa Das Sete MulheresOnde histórias criam vida. Descubra agora