Cadernos de Manuela

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Pelotas, 4 de setembro de 1880.

Não dormi naquela noite, mas gastei-a lentamente, como quem chupa os gomos de uma laranja, sorvendo seu sumo com prazer e com cuidado. Porque não queria que a noite passasse, nem que o sol rompesse a barra da madrugada, onde a paz do mundo me aproximava ainda mais da grande verdade: eu encontrara o amor. 

Decerto, assim o soube desde o primeiro instante, e esse amor não me veio como chuva, mas era um manancial, era um oceano tão igual ao que Giuseppe nos narrara, que soube ser verdadeiro e eterno — até hoje ainda o amo com a mesma faina, mesmo gasto o tempo, mesmo passadas tantas coisas, mesmo que esse oceano já se tenha evaporado e dele só me reste o seu sal e alguns escombros de sonhos, como fósseis mui antigos que eu acarinho com cuidado para que não virem pó.

Giuseppe Garibaldi. Giuseppe... Repeti aquele nome muitas vezes, baixinho, enquanto Mariana ressonava ao meu lado, e aquela palavra era tão linda, e cada letra que nela se incrustava era tão perfeita, que chorei repisando seu nome... De terras tão longínquas ele me vinha, e tão galante, garboso nos seus modos, nos seus sorrisos, nos seus jeitos de tratar com uma mulher... Tinha ele então vinte e seis anos, e era tão homem, tão digno, tão corajoso. Ah, o que os seus olhos já tinham visto. Que terras, que mistérios, que tesouros e perigos contemplara. E, no entanto, guardavam ainda aqueles olhos para mim o seu brilho e a sua luz de sol poente... Sim, pois foi sob seu olhar que me descobri mulher. E eu era então como a concha que descobre em si mesma uma pérola. 

No dia seguinte, estive quieta a bordar por muitas horas. A casa estava mergulhada numa alegre agitação que a proximidade dos homens impingira. D. Ana resolvera ir até a cozinha ela mesma preparar goiabada para Garibaldi. Tinha gostado muito dele. E Mariana e Rosário, que tanto proseavam: era o italiano um príncipe!, e ainda havia os outros, de tão longe, espanhóis e franceses, que decerto um deles ao menos seria belo... Assim ansiavam elas, e a guerra até lhes sabia mais doce então. As tias tricotavam, em conversas; somente minha mãe permanecia no seu silêncio triste, ora e outra quebrado por uma palavra, não mais. E eu, eu ia tão feliz... Dona de uma certeza: Giuseppe Garibaldi tinha me amado como eu o amara. E construir barcos, ah, construí-los era tarefa demorada. Pensando assim, me esquecia das guerras e dos planos de Bento Gonçalves: ganhar as águas internas e ir em busca de um porto republicano. Mas o que era uma república para mim, naquele tempo, uma moça de dezoito anos, com o coração transbordante do mais puro amor? Que todos os contratempos se sucedessem! Que se forjasse o ferro por mil anos e que a madeira estivesse sempre verde. Assim, Giuseppe ficaria entre nós ainda muito tempo, e me diria de seu amor... E então, um dia, quando fosse a hora, partiríamos juntos para qualquer outro lugar, para a felicidade. Ah, de Joaquim não havia na minha alma a mais remota lembrança...

**

Os dias foram passando, naquela primavera de 1838. Sabíamos, pelo que nos contava D. Antônia, que o estaleiro às margens do Camaquã tomara-se da mais febril das agitações. Garibaldi e John Griggs passavam muito tempo debruçados sobre planilhas, sobre desenhos onde o esqueleto dos barcos se destacava em tinta negra; dia e noite se viam os homens a trazer a madeira recolhida nas matas ali de perto, e era sempre a forja com seu calor infernal, onde o irmão de Zé Pedra derretia-se em trabalhos para dar vida a eixos e roldanas, parafusos e outras misteriosas coisas que ergueriam o corpo dos sonhados barcos republicanos. Barcos que, se esperava, mudariam o rumo daquela guerra. 

Carpinteiros e marinheiros trabalhavam feito formigas, dias e noites. D. Antônia mandava para o estaleiro certa quantidade de pães e de doces, quase diariamente, para regozijo dos homens, que tinham lá consigo um cozinheiro para as suas merendas. Especialmente para Giuseppe, D. Antônia mandava bolo de milho, iguaria que ele muito apreciara — e assim foi que soube que meu adorado andava já conquistando o duro e reservado coração de minha tia. 

Apesar de toda a faina, em certas tardinhas de céu avermelhado, quando soprava pelo pampa aquela brisa cheirando a flores de primavera, na hora final dos seus trabalhos, Garibaldi vinha ver-nos e contar das novidades. Ah, como eu aguardava então essas surpresas, sempre com o coração pendurado por um fio, sempre ansiosa, zelosa de qualquer ruído novo, de qualquer palavra quente que me delatasse o som ditoso da sua voz... Foram esses serões que, freqüentemente escorregando até as horas de se jantar, nos aproximaram. Ficávamos longo tempo proseando sobre coisas, sobre a vida, o pampa, a guerra, o mar e o mundo inteiro. D. Ana, zelosa de mim, vez por outra vinha estar conosco, rir conosco, deliciar-se nas histórias daquele homem italiano que sempre sabia nos encantar. Caetana também muitas vezes ficava na varanda ouvindo Giuseppe contar aventuras. Minha mãe acabrunhava-se. Certa vez, numa noite, chamou-me ao seu quarto. 

— Vosmecê tem compromisso, minha filha — foi o que me disse. — Joaquim é como se fosse seu noivo. Vosmecês hão de casar brevemente, seu pai deixou tudo acertado com seu tio, não esqueça... Ademais, esse italiano, por mais que bons sorrisos tenha, não foi feito para usted. É um homem sem casa, sem pouso. Um pássaro. Sabe-se lá de onde vem e para onde vai. É um aventureiro. 

— Esteja calma, senhora minha mãe. Apenas somos amigos, e é só. Hay que se gastar o tempo com alguma coisa por aqui. 

Menti-lhe. Sim, escorregou de meus lábios aquela mentira sem que eu me apercebesse. Mas dizer o quê àqueles olhos escuros, agora sempre lacrimosos? Dizer que eu amava e que tal amor era incontrolável? Dizer que de repente o pampa, o céu sob minha cabeça, o Rio Grande inteiro ficavam pequenos para acalentar tamanha paixão? Joaquim estava longe, na guerra. E eu estava ali, presa ao magnetismo de Giuseppe... Sim, menti. Talvez, à próxima confissão, tivesse de pagar esse pecado, mas qualquer preço era justo por aquele amor. 

— Fique atenta, Manuela. As pessoas falam. — Minha mãe fitava- me com olhos tristes. 

— As pessoas estão na guerra, mãe. Assim encerrou-se nossa pequena entrevista. 

No dia seguinte, como que atraído pelos apelos de minha alma, Giuseppe veio ver-nos. Era cedo ainda, e saímos pelos campos cavalgando. Mariana ia conosco, mais atrás. Seguimos até a sanga. Era uma tardinha fresca, de final de outubro, e umas poucas nuvens finas se esparramavam sobre nossas cabeças como um imenso mosaico. Mariana foi colher umas flores. E então Giuseppe aproximou-se de mim. 

— Manuela... — A voz dele. A voz dele era como a brisa soprando no arvoredo. — Manuela, preciso dizer una cosa... Um segredo delia mia alma... 

Estávamos à beira da sanga, e a água corria com seu murmúrio de passarinhos. Os cavalos matavam a sede placidamente. 

— Vosmecê me diga, por favor. 

Ele derramou o mais quente olhar sobre minha face. 

— Estou enamorado, Manuela. Enamorado delia signorina... Desde a primeira vez, desde a chegada, que il mio pensamento pertence a signorina... Hay una floresta dentro dos vossos olhos, Manuela. E io sono perdido in questa floresta. 

Segurou a minha mão entre as suas, tão fortes e amorenadas pelo sol. Foi como se meu corpo partisse em mil bocaditos, como se explodisse, como se rebentasse tal e qual uma nuvem rebenta na hora das chuvas... Deixei minha mão entre as suas por um longo momento, como um pássaro aconchegado em seu ninho. E só quando vi que Mariana retornava com a cesta repleta de flores, foi que retirei daquela morneza a minha mão, e que lhe disse: 

— Também eu só penso em vosmecê, senhor Garibaldi. Eu não conheço o mar, senhor Garibaldi, mas acho que um pouco dele está nos vossos olhos. 

Retornamos em silêncio para a casa, onde nos esperavam com o jantar. Mariana falava banalidades e dizia graças, e Giuseppe lhe devolvia alguns sorrisos, mas seus olhares estavam presos em mim como pedras preciosas incrustadas num colar. E aquele foi, então, um dos momentos perfeitos da minha vida.


Manuela.

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