Capítulo 2

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A casa tinha recuperado uma certa paz, já não se via Mariana chorando pelos cantos, nem Maria Manuela a rezar no oratório por tardes inteiras: fazia tempo que não se ouviam notícias do corsário italiano, e também Rosário melhorara um tanto, mesmo imersa num silêncio inexpugnável, agora já sentava à mesa todos os dias e voltara até mesmo aos bordados. 

A primavera tinha sido boa também para os exércitos republicanos. Vitórias e expansão, a tomada de Laguna, a mudança da capital para a cidade de Caçapava, tudo contribuía para aumentar o ânimo das gentes partidárias de Bento Gonçalves e seus generais. Recentemente, Caetana tinha ido encontrar o esposo em Caçapava, onde participara de um faustoso baile, e voltara para a estância impressionada com o progresso da cidade. D. Ana não visitava Caçapava fazia muito tempo, e se espantou com as descrições da cunhada: Caçapava tinha hospital, imprensa, quartéis, um governo com ministros, uma igreja faustosa e edifícios elegantes que provavam que a República podia ser muito rica se os ventos continuassem a soprar a seu favor. 

Não esperava, portanto, naquela manhã fresca e ensolarada, que uma carta por si só tão almejada — fazia muito que não tinha notícias de José — fosse lhe trazer tamanho quinhão de angústias, e ainda sorvia seu mate com toda a calma, quando Zé Pedra veio anunciar a presença de um soldado que desejava prosear com a patroa. 

D. Ana recebeu o jovem republicano na varanda, e seus olhos brilharam quando ela reconheceu a letra que cingia o envelope que lhe foi entregue. Mandou que dessem comida e bebida para o soldado, e que lhe alcançassem também um pala novo (o dele estava em tiras), coisa que o jovem agradeceu com um sorriso aliviado e orgulhoso ao mesmo tempo. 

D. Ana correu para o quarto e abriu o envelope já meio enxovalhado. Sentia o peito batendo forte: fazia muito que José não vinha vê-la, e agora, estando em Laguna, era impossível que não temesse por ele. Até quando soprariam os ventos da boa sorte para os republicanos de Santa Catarina? Os imperiais não deixariam a vitória republicana impune. Lá, os rebeldes estavam longe do grosso dos seus exércitos, sustentavam solitos aquela revolta, apenas com o fio de suas adagas e a força de sua coragem. E o seu filho estava em Laguna lutando ao lado da gente de Canabarro... O filho tão parecido com Paulo, o filho que ela ensinara a ler, que vira crescer e virar homem feito, de barba espessa e voz grossa que ela amava tanto, tanto.

"Minha querida mãe,

 Escrevo de meu quarto aqui na vila de Laguna, pois sei que amanhã o italiano Rosseti despachará correio ao Rio Grande, e guardo que esta carta siga junto até as mãos da senhora. Sei que deve estar pensando em mim e em como estou aqui nesta nova República, e le digo que esteja tranqüila quanto à minha saúde, que vai mui bien, e ao meu estado, que aqui tenho de tudo o que fazer e estou com as tropas do nosso valoroso Teixeira Nunes.

 O mesmo, minha mãe, não le digo desta nossa república recém- instaurada. Tudo aqui parece estar desandando mui rapidamente, e só Davi Canabarro — ocupado em exercer seus desmandos e seu poder — parece não notar que as coisas estão malparadas. De tudo já sucedeu. Davi Canabarro busca apenas livrar-se dos que considera subversivos, nada fazendo para ser benquisto por este povo, que já começa mesmo a desprezá-lo. Há aqui um padre com grandes influências, chamado Vilella, e até com esse homem da Igreja o general já se desentendeu amargamente. Mandou prender mais de setenta pessoas, isso numa vila pequetita como é esta Laguna. É um desmando total, mãe, e fico imaginando o quanto não seria bom que Bento Gonçalves chegasse por aqui, com sua palavra única e seu modo sereno e guapo de tomar decisões. Mas Bento não vem, e o pobre Rossetti não consegue mais contornar as atitudes des-póticas de Canabarro.

 Para que a senhora saiba como vai tudo, ouça que até mesmo o italiano Giuseppe Garibaldi, tão honroso soldado, e a quem tanto nós devemos, cometeu a sua falta, tendo se apaixonado e tomado para si uma moça da vila que era casada, e cujo marido está na guerra junto com as tropas inimigas. Pois o nosso valoroso Garibaldi, que furou o bloqueio imperial aqui na barra de maneira tão engenhosa quanto corajosa, levou em seu barco a tal moça de nome Anita e rumou para o litoral de São Paulo, com o intento de fazer capturas nas águas. Esta vila está mui ofendida com esse amor impudico assim consumado em plena luz do dia, e mais ainda com os desmandos de Davi Canabarro, sendo que o povo daqui já não é mais o mesmo que tomou as ruas para nos receber, é bem outro, arisco e fugidio."

A Casa Das Sete MulheresOnde histórias criam vida. Descubra agora