Perpétua descobriu que tinha um filho dentro de si ao despertar certa manhã, apenas porque lhe ficara um gosto estranho na boca, e na alma uns restos de sonho onde via uma menina mui pequetita correndo entre as alamedas da fazenda do Boqueirão com um vestido de rendados cor-de-rosa.
Inácio estava na charqueada. Ao voltar, pela metade do dia, encontrou a esposa sentada à sala, tricotando. Como sempre, ao vêla, seus olhos se iluminaram de alegria. O casamento fizera-lhe bem. Estava mais corada, com uns ares de comando, alguma coisa de semelhante à beleza derradeira da mãe misturava-se a uma calma que lhe vinha dos Gonçalves da Silva. Perpétua ergueu os olhos e sorriu para o marido. Deixou de lado os bordados e falou:
— Tenho uma coisa a le dizer, Inácio. Ele sentou e tomou-lhe a mão.
— É coisa boa ou ruim?
Perpétua acarinhou o rosto escanhoado do marido. Entre tantos homens de longas barbas, a face limpa de Inácio lhe parecia muito desejável. Gostava de seu contato macio, e daqueles beijos quentes. Abriu um sorriso.
— É coisa boa. — Esperou alguns segundos, saboreando a notícia: — Vou ter um filho.
Inácio de Oliveira Guimarães resplandeceu:
— Vosmecê tem certeza, Perpétua? Certeza mesmo? Não me dê o céu por engano, hein?
— Oh, tenho certeza. É tão certo como esta terra sob nossos pés. Eu já tinha minhas intuições, entonces a negra Quirina fez uma simpatia infalível, que agora confirmou tudo. Pelo meio do inverno que vem, teremos um filho.
Naquele almoço, Inácio bebeu vinho e brindou. Sempre quisera filhos, mas a saúde frágil da pobre Teresa nunca lhe permitira realizar esse sonho. Achou, então, Perpétua mais bonita do que nunca, e via já um viço novo nos seus olhos escuros, na sua pele espanholada, no leve balancear das suas longas pestanas.
Despertou da sesta com a chegada de um mensageiro. Era urgente que fosse até Piratini, onde o ministro Domingos José de Almeida o aguardava para uma secreta reunião. Deu a notícia à esposa.
— Bueno. Arrume suas coisas, Perpétua. Fico uns dois meses fora. Hay muito o que fazer neste Rio Grande ainda... E vosmecê não vai restar aqui no Boqueirão, grávida e solita. Amanhã bem cedo vamos até a Barra. Deixo vosmecê lá com sua mãe.
Chegaram à Estância da Barra ao entardecer do dia seguinte. Chovia mansamente, a água se esparramando pelo chão em pequenas poças.
Caetana Joana Francisca Garcia Gonçalves da Silva estava em seu quarto, ensinando uma reza à pequenina Ana Joaquina, quando Milú veio lhe avisar da chegada da filha mais velha. Caetana correu à varanda, um sorriso no rosto. Mal pôs olhos na moça, que vinha de braço dado com o esposo (já vestido com o uniforme republicano), pegou-se a dizer:
— Vosmecê está diferente, nina. — Perpétua corou bruscamente. E Caetana soube então: —Está esperando um filho, Perpétua Justa! É por isso que veio sem avisar, nem um bilhete mandou!
O sorriso tímido da filha confirmou-lhe o presságio. E a boa nova se espalhou pelas salas da casa, causando um alegre alarido. Perpétua estava esperando seu primeiro rebento! Logo teriam outra vez o chorinho manso de um bebê a trilhar os corredores, logo o varal se encheria novamente de fraldas!
*
(Após o jantar, quando o marido já tinha partido em viagem e as parentas se tinham recolhido para o sono, Perpétua arrastou-se com Manuela até a varanda da casa, e lá, sob as estrelas, ouviu a história do italiano Giuseppe Garibaldi.)
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O estaleiro republicano ficava nas margens do Rio Camaquã. Rio que desembocava suas águas, através de várias barras, na Lagoa dos Patos. As barras eram rasas, quase impossíveis de serem vencidas por barcos de grande calão, que ficariam encalhados naquelas areias. Mas não para os barcos que Griggs e Garibaldi estavam construindo. Os lanchões Seival e Farroupilha poderiam atravessar facilmente as barras, navegar pelas águas da Lagoa e voltar ao estaleiro sem que nada atrapalhasse tal empreitada. Eram barcos pequenos e leves, que facilmente se meteriam entre os juncais que cobriam as margens da Lagoa dos Patos, e ali desapareceriam dos olhos do mundo, rumo à segurança da Estância do Brejo.
Esse era o plano. Realizar incursões na Lagoa, atacar barcos imperiais, atacar as estâncias dos caramurus que ficavam nas margens — dominar, enfim, as águas interiores, senão pela força, pela inteligência e prática. A República Rio-grandense precisava desse fôlego. Era para isso que Giuseppe Garibaldi treinava seus marinheiros.
Nos últimos dias de 1838, o Seival, de doze toneladas, e o Farroupilha, de dezessete, ficaram prontos. Garibaldi comandava o Farroupilha, e John Griggs, o Seival. A poucas léguas dali, as águas da grande Lagoa esperavam. Para comemorar o feito, D. Antônia mandou que se carneassem dois bois, e houve churrasco para os marinheiros. Era o começo de uma grande vitória, todos tinham certeza. Garibaldi escreveu longa carta ao general Bento Gonçalves, e depois do churrasco, enquanto os homens bebiam vinho e canha, achou um jeito de montar no cavalo e ir prosear com Manuela. Levava no rosto bonito um sorriso de satisfação pela tarefa cumprida. Já tinha os seus barcos.
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A Casa Das Sete Mulheres
RomanceA Guerra dos Farrapos, ou Revolução Farroupilha (1835-1845) - a mais longa guerra civil do continente - , foi uma luta dos latifundiários rio-grandenses contra o Império brasileiro. As complexas razões do levante estão nos livros de História. O qu...