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INTRODUÇÃO

 Mariana escuta o silêncio da casa. São duas horas da tarde de um janeiro abrasador. Lá fora, o sol inclemente castiga o pampa e faz os animais procurarem uma sombra que seja; aqui dentro, há essa temperatura amena e esse suave murmúrio de sono. 

 Estão todos recolhidos em seus quartos. Manuela dorme, estendida na cama, usando apenas a roupa branca, que quase se mistura à palescência morna da sua própria pele. Mariana levanta-se sem fazer ruído — já aprendeu essa arte de mover-se como sombra — , põe o vestido com gestos rápidos, calça as botinas. Sai do quarto mansamente. 

 Não há ninguém no corredor. Mariana sabe que D. Rosa não dorme a sesta, mas está na cozinha ajeitando alguma coisa, bordando, preparando o bolo da tarde. D. Rosa sempre em movimento, com seus gestos ágeis e sua fala pouca. Mariana passa longe da cozinha e dos olhos atentos da governanta. Atravessa a sala. Os bordados esperam em seus cestos, os vasos de flores dormitam, há em tudo uma expectativa de que o dia prossiga, de que o calor diminua e a vida tome seu rumo outra vez.

 Na rua, o ar abafado a envolve, umedece sua pele. Ela pouco se importa. Contorna a casa, vai pela sombra, quando sombra há, e segue para o galpão da charqueada. Sabe que agora os peões também descansam, aqui e acolá/sob a sombra das árvores, no quintal, no galpão dos animais, no curral. Essa não é a hora do trabalho nesse pampa assolado pelo verão. Há uma única pessoa na charqueada, e essa pessoa é João.

 Mariana conheceu João faz pouco mais de um mês. João não está na guerra, não é caramuru nem farrapo, é peão de estância e bom violeiro. Foi Manuel quem o trouxe. E D. Ana precisava de braços para o trabalho, pois muitos peões foram para a Campanha, estão lutando com os republicanos, estão morrendo por essas coxilhas afora. João tem vinte e três anos e é muito moço para morrer. Doma bem um cavalo, é bom de prosas, o pessoal da estância tomouse de afeto por ele. A noite, ele canta na beira do fogo. E é um homem bonito, alto, de olhos castanhos e cabelos negros. Há alguma coisa de índio nos seus olhos oblíquos, e ele sorri como um gato. Esse sorriso foi a primeira coisa que Mariana viu. A segunda foi o toque morno daqueles dedos rudes. Sim, João logo a abraçou, assim que se cruzaram numa tarde perto da sanga, quando Mariana tinha ido levar Ana Joaquina, a filhinha de Caetana, para tomar banho por lá. Ana Joaquina ficou brincando, quietinha, enquanto João e Mariana se abraçaram e se tocaram e se beijaram e venceram aquela fronteira misteriosa e escarpada. A menina não perguntou dos cabelos desgrenhados da prima, nem daquele rubor em seu rosto, nem reparou os botões mal arranjados do seu vestido um pouco sujo de terra.

 Depois daquela tarde, viram-se amiúde. Na sanga, na charqueada, no capão. Mariana achou nos dias uma graça toda nova, e na solidão daquela estância, o terreno perfeito para ver florescer seu amor. Combinavam seus encontros com a minúcia da paixão, esquivavam-se dos outros, mentiam, faziam render esses minutos roubados ao dia com uma ânsia semelhante à adoração. Mariana ganhou outro viço, encheu-se de alegrias, mas não contou desses amores a ninguém, nem à irmã, nem à prima.

 A porta do galpão range levemente quando ela entra. Os braços de João surgem das sombras e contornam sua cintura. O sol penetra pelas frestas da madeira, desenha arabescos no chão. Ela sorri, enquanto aquelas mãos famintas sobem para o seu colo, para o pescoço, para o rosto, e contornam sua boca, e desmancham as tranças do seu cabelo negro. Beijos salgados e urgentes.

— Ai, Mariana, que não faço mais nada... Solamente penso em usted. Minha Mariana.

 A voz dele é um sussurro doce.

 Faz calor. Ele ri seu sorriso de gato, a pele morena de sol os olhos cintilando aquele ardor de coisa jovem, de animal no cio. Mariana lambe o pescoço úmido, sente o gosto daquele homem com quem sonha toda noite, por quem espera, e anseia e arde. Não existe mais nada, lá fora, nem guerra, nem a casa, nem as tias, a mãe, as negras. Não existe nada e ela fará o que deseja, fará o que pede seu corpo trêmulo. Seguirá aquele instinto que lhe nasce das entranhas, que nunca esteve em nenhum livro de oração nem na boca de nenhuma mulher de respeito, mas que vibra, pede, ordena. A vida corre em suas veias como um rio caudaloso que busca o mar.

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